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Boas maneiras de combater
os medos das crianças
Entre o livro e o Teatro LU.CA, a Associação Princesa Azul e a
teatralização das histórias feita nas escolas, muito pode ser feito,
posta em perspetiva e renovado nas crianças, educadores e famílias.
Ninguém deixa de ter medos só porque sim e, muito menos, porque
alguém decreta que não há razões para ter medo. As coisas não são assim
tão fáceis e sabemos bem que todas as idades têm os seus pavores e
temores.
Os pesadelos das crianças são verdadeiramente
assustadores e implicam com o sono de todos, pais e filhos. Ninguém
dorme quando uma criança acorda a meio da noite, a chorar apavorada.
Muitos de nós sabemos bem o que é trazer os filhos para a cama e perder a
noite por não cabermos todos da mesma maneira, na mesma cama.
Sobretudo, por ficarmos a tentar aplacar os pontapés involuntários de um
filho que readormece e se atravessa no colchão por se sentir invencível
na cama dos pais.
Não vale a pena tentar ser muito pedagógico com
uma criança no momento em que desperta do sono com medos. Se o que a
fez acordar foram terríveis pesadelos com monstros é importante acender a
luz e mostrar que não há monstros no quarto, mas nem sempre é possível
estabelecer um diálogo lúcido e efetivo. Muito pelo contrário, um bom
abraço, um pouco de colo, uma voz que embala, gestos de ternura e muitos
mimos devolvem a segurança, dando-lhes a certeza de não estarem sós.
Valem mais que uma explicação factual sobre a inexistência de fantasmas e
monstros.
Os medos das crianças tratam-se com mais eficácia se
agirmos a montante ou a jusante. No momento em que estão aterrorizadas é
muito difícil dizer ou fazer alguma coisa que não seja tentar
acalmá-las com abraços e uma presença forte, terna e securizante. Assim
como não é possível elaborar grandes teorias sobre a amizade entre os
animais e os homens quando uma criança fica paralisada ou corre aos
gritos porque tem medo de um cão, também não é recomendável dissertar
filosófica e existencialmente sobre os pesadelos no momento em que
acabaram de ter um.
Nesta lógica, há estratégias mais eficazes e
uma delas passa por contar histórias, ler bons livros ou assistir a bons
filmes e boas peças de teatro, para poder ter boas conversas a partir
dessas mesmas histórias, lidas ou representadas. Há muitas opções e cada
pai ou mãe saberão sempre encontrar as que melhor se adaptam às idades e
fases dos seus filhos, mas agora que inaugurou o maravilhoso Teatro
LU.CA – Teatro Luís de Camões, em Belém, vale a pena estar atento à
programação infantil porque também é feita a pensar em alguns ‘nós
cegos’ reais e imaginários que atrapalham a vida das crianças.
(Abro
um parêntesis para dar os parabéns à CML pela extraordinária
recuperação de uma sala construída em 1737, que foi a Casa da Ópera do
rei D. João V, e agora é um Teatro exclusivamente dedicado às crianças e
ao público mais jovem. O espaço do LU.CA parece um sonho: um verdadeiro
teatro infantil, numa escala fabulosamente acolhedora e fantasticamente
bem recuperado, onde apetece ir e voltar com filhos e netos. Lindo!)
No
fim de semana passado tivemos a felicidade de juntar nove netos em casa
e fomos com alguns ver a peça “Um tigre-lírio é difícil de encontrar”.
Foi uma experiência mágica para todas as crianças presentes no LU.CA,
justamente por se poderem sentar numa plateia com muita proximidade com o
palco e os atores. A peça é sobre quatro crianças perdidas numa
floresta, sem saberem como é que ali foram parar, e os atores falam dos
seus medos com humor e muita fantasia.
Na plateia, as crianças
vão-se revendo na história que o ator, dramaturgo e encenador Alex
Cassal criou para estrear o recém-inaugurado Teatro LU.CA. (em minha
opinião a peça tem apenas um brevíssimo momento que pode ser melhorado,
se a sensibilidade de todas as crianças for tida em conta e esse momento
não se destinar apenas a algumas, podendo chocar as outras, mas sobre
isso falei no fim com Susana Menezes, a diretora artística do Teatro
LU.CA, que simpaticamente convidou os atores e o encenador a virem
conversar com o público no fim, numa espécie de extensão da peça que fez
com que as crianças saltassem automaticamente para a beira do palco e
tivessem a experiência feliz de falar com os atores.).
Nesta
floresta mágica, onde tudo pode acontecer, Crista, Daniel, Binete e
Alfredo, as quatro crianças perdidas, falam de personagens misteriosos e
criaturas assustadoras, mas ao mesmo tempo, cómicas. Riem e fazem rir,
perdem-se e voltam a encontrar-se e, pelo meio, falam de um tigre muito
assustador que tem uma juba enorme, toda poderosa, feita de lírios
gigantes. A ideia do tigre-lírio provoca medo, primeiro por ser um tigre
e depois por ser um animal desconhecido. E é este filão que os atores e
o dramaturgo exploram em cena.
Ter medo do desconhecido é próprio
do ser humano e é, inclusivamente, um sinal de alerta que potencia a
auto preservação. É bom sentir medos, portanto. E é esta verdade
científica, associada à certeza de que não existem tigres-lírios, que
permite aos pais, avós e educadores conversarem depois com as suas
crianças, dissecando com elas os seus medos e pulverizando muitos dos
seus maiores e mais terríveis pesadelos.
É mais fácil desfazer a
ideia de certos monstros e matar alguns fantasmas depois de ver uma peça
de teatro em que as crianças perceberam em toda a extensão que há
criaturas que não existem e medos que não vale a pena ter, do que tentar
explicar-lhes estas coisas sem terem feito a experiência de se reverem
em atores ou protagonistas reais ou imaginários de histórias bem
escritas ou bem interpretadas.
Nesta rentrée os pais e educadores
de crianças e jovens ganharam novas ferramentas para os ajudar a lidar
com os seus medos, angústias, ansiedades, e até com situações mais
dramáticas como as das vítimas de bullying ou alguma forma de assédio.
Passaram a ter o Teatro LU.CA, onde a programação se estende a palestras
e Master Classes sobre temas tão essenciais como o racismo e a
discriminação, mas também o recém-publicado Livro das Emoções,
de Filipa Saragga, escrito em coautoria com as técnicas da Consulta de
Ansiedade do Centro de Progresso Infantil e prefaciado por Nuno Lobo
Antunes.
O Livro das Emoções é um livro cheio de beleza e
magia que explica às crianças as emoções e as maneiras de lidar com
elas. Não fala apenas de medos, mas também de saudade, raiva, nojo,
tristeza, vergonha, frustração e alegria. Este livro surge na sequência
de um outro, integrado no Plano Nacional de Leitura desde o ano em que
foi publicado. Falo d’A Princesa Azul, história escrita com a intenção de promover o combate ao bullying
através da consciência dos danos que qualquer forma de assédio provoca
nas vítimas, sobretudo em idades precoces ou quando a personalidade
ainda não está completamente formada e, por isso mesmo, é mais frágil e
mais vulnerável.
A Princesa Azul tornou-se uma marca,
aliás. Uma personagem com vida própria que gerou uma Associação cuja
vocação é ir a escolas teatralizar situações de bullying,
permitindo às crianças e jovens compreender melhor o impacto destrutivo
de certas palavras e atos. Através da história da Princesa Azul, dos
seus amigos e inimigos, as crianças ficam mais conscientes do poder
resgatador ou demolidor daquilo que dizem e fazem umas às outras. Mais
uma vez a ligação entre livros de histórias e a representação destas
mesmas histórias tem o múltiplo efeito de despertar para uma realidade
terrível, mas também dá origem a incríveis catarses, pois nas idas às
escolas a Princesa Azul tem escutado partilhas de vítimas que se revêm
na história e contam aquilo que lhes aconteceu.
Estas crianças
nunca partilham em público, mas aproveitam a existência de uma Princesa
Azul que vem ao seu encontro, convocando o seu imaginário, mas também a
sua experiência e vivências, e no segredo de um gabinete na própria
escola ou segredando ao ouvido da Filipa Saragga, que encarna a
inspiradora e terna personagem da Princesa Azul, contam terríveis
episódios que as atormentam e até ali guardaram só para si. Sabemos bem
que o medo, associado ao silêncio, provocam grandes danos na
autoconfiança e na autoimagem de crianças e jovens. Danos que podem
tornar-se irreparáveis se não forem detetados e tratados a tempo.
É
muito impressionante assistir ao início deste processo catártico e
curativo das crianças que sofrem por serem (ou terem sido) vítimas de
agressão física, moral ou emocional. E é por ser tão impressionante e
tão salvífico que não posso deixar de escrever também sobre este
belíssimo Livro das Emoções, cheio de profundidade e realismo, mas
também repleto de magia e mistério, em páginas a transbordar de
ilustrações, mesmo como as crianças gostam.
Entre o livro e o
Teatro LU.CA, a Associação Princesa Azul e a teatralização das histórias
feita nas escolas, muita coisa pode ser processada, posta em perspetiva
e renovada nas crianças, educadores e famílias. Que bom existirem estas
e tantas outras boas maneiras de combater os medos das crianças.
IN "OBSERVADOR"
18/09/18
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