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2014.
o combate pelas palavras
Neste combate pelas palavras de 2014, o Governo parte em vantagem, não porque tenha razão, mas porque tem mais meios
2014 será um ano de completo, devastador, cruel, sem tréguas, combate
pelas palavras. Dizendo palavras digo também ideias e fragmentos de
ideias, mensagens virais e manipulações circulantes, explicações e
mistificações, estatísticas, estatísticas torturadas, soundbites e frases assassinas.
Propaganda e razão vão
estar de lados opostos, manipulação e vontade de verdade (concessão aos
que a palavra verdade de per si ofende) vão-se defrontar, como sempre,
de forma imperfeita e desigual. Do lado do poder todos os recursos serão
utilizados, “comunicação política”, agências de comunicação,
assessores, briefings e ministros da propaganda, marketing e “eventos” (tenho a certeza que Portas já pensa num “evento” grandioso e patriótico para festejar a “saída” da troika, por singular coincidência a dias das eleições europeias…).
Esse
combate irá travar-se numa parte decisiva na comunicação social, em
primeiro lugar na televisão, depois nas “redes sociais” e nos blogues e
por fim na imprensa escrita. Alguns jornalistas ficam muito irritados
quando afirmo (e vou repetir) que um dos problemas dos dias de hoje na
vida pública em Portugal é a facilidade com que a comunicação social
absorve a linguagem do poder e a reproduz como sendo sua, assim
legitimando-a porque lhe dá um sujeito neutro, tornando-a uma verdade
universal. Este processo não é simples, não se trata de estar “a favor”
ou “contra” o Governo, nem sequer de actuar em função de preferências ou
hostilidade partidárias, porque se fosse assim seria mais fácil
identificar o que se passa.
Há um papel importante para os gostos e
os ódios pessoais, mas isso faz parte do meio jornalístico desde
sempre. O hábito é ajustar contas em função das simpatias ou antipatias
pessoais entre jornalistas, políticos e outras personagens do espaço
público, muito mais eficaz como explicação do que as simpatias
partidárias. A promiscuidade entre jornalistas e “fontes”, a troca de
favores e cumplicidades, as amizades e os amores, as vinganças e elogios
interessados passam-se de modo subterrâneo, mas explicam muito da
atitude de jornalistas face aos detentores do poder político, actual ou
passado. Ora pouca gente cultiva mais a sua relação com os jornalistas
do que os grupos dirigentes das “jotas” dos partidos, seja do PS ou do
PSD, cuja proximidade social, cultural, de mentalidade e modo de vida, é
quase total, e cuja partilha geracional de vocabulário (escasso),
fragmentos de ideias, mitos e (in)experiências é igualmente comum.
Muitas
vezes estas empatias têm a ver com o bem escasso da “influência” e os
conflitos pela capacidade de a ter, outras vezes é inveja por ganhos e
recursos. O problema é que, sendo esta uma explicação importante para
muito do que se publica e se diz, ainda por cima em meios muito
pequenos, que comunicam entre si, e onde está sempre alguém no lugar
pretendido por outrem, ela é invisível para a comunidade dos
consumidores dos media, que desconhecem muitos dos meandros que
estão atrás dos bastidores. Explicava muita coisa, como se percebeu
quando do “caso Relvas”, mas é na maioria dos casos impossível de usar.
Há
cada vez mais jornalistas e jornalistas-comentadores mais próximos do
poder, partilhando do mesmo pensamento de fundo associado ao
“ajustamento”, embora possam discordar e algumas vezes serem até
agressivos na crítica a aspectos de detalhe da governação. O problema é
que a concordância de fundo é muito mais importante do que a
discordância no detalhe e o núcleo central de legitimação do poder
permanece intocável.
A mentalidade adversarial da comunicação
social, já em si mesmo uma fragilidade, deu lugar a uma enorme
complacência com o poder. Uma das razões desta proximidade de fundo tem a
ver com o papel cada vez mais destacado da imprensa económica em tempos
em que a “crise” é dominantemente explicada apenas pelas suas variantes
económicas. O predomínio da economia levou a um avolumar do “economês”,
uma variante degradada quer da economia, quer da política. E esse
“economês” favorece os argumentos de “divisão” que têm tido muito
sucesso no discurso público, fragilizando, no conflito social, umas
partes contra as outras. Este discurso da divisão é uma novidade desta
crise e uma das principais vantagens da linguagem do poder.
Colocar
novos contra velhos, empregados contra desempregados, trabalhadores
privados contra funcionários públicos, reformados da Segurança Social
contra pensionistas da CGA, sindicalizados contra “trabalhadores”,
grevistas contra a “população”, e muitas outras variantes das mesmas
dicotomias, tem tido um papel central no discurso governamental, que
encontra na “equidade” um dos mais fortes elementos de legitimação. Se
se parar para pensar, fora dos quadros das “evidências” interessadas,
verifica-se até que ponto uma espécie de neomalthusianismo grosseiro
reduz todas estas dicotomias a inevitabilidades a projecções sobre o
“futuro” muito simplistas e reducionistas e que recusam muitos outros
factores que deviam entrar na avaliação dessa coisa mais que improvável
que é o “futuro”. À substituição da política em democracia, com o seu
complexo processo de expectativas e avaliações, traduzidas pelo voto,
ameaçando, como dizem os “ajustadores”, pela “politiquice”, ou seja, as
eleições, a “sustentabilidade” das soluções perfeitas de 15 ou 20 anos
de “austeridade”, soma-se a completa falta de pensamento sobre o modo
como as sociedades funcionam, que o “economês”, que é má economia, não
compreende.
A redução das análises correntes a este “economês”,
sem política democrática, nem sociedade, revela-se num fenómeno recente
que é a proliferação de livros de jornalistas com as receitas para
salvar o país, quase todos sucessos editoriais. Eles mostram a
interiorização profunda, em muitos casos prosélita, noutros mais
moderada, da linguagem, explicações, legitimações, amigos e adversários,
proto-história e factos seleccionados, do discurso do poder sobre a
crise. A isso acrescentam propostas em muitos casos inviáveis em
democracia e num Estado de direito, e cuja eficácia, mesmo nos seus
termos, está por demonstrar.
Esses livros favorecem a ideia de que
o “vale-tudo” que está por detrás da continuada sucessão de legislação
inconstitucional do Governo poderia ser a solução ideal “para Portugal”,
que infelizmente é “proibida” ou pela “resistência corporativa” dos
interesses ou por entidades como o Tribunal Constitucional, ou mesmo
pela “ignorância” e impreparação da opinião pública. Escreve-se como se
não houvesse interesses legítimos que o Estado de direito acautela, ou
práticas brutais de transferência de rendimentos e recursos, que tem
sempre quem ganha e quem perde, cujos efeitos na conflitualidade social
tornam por si próprio insustentável a sua manutenção. São de um modo
geral muito complacentes com os de “cima” e muito críticos dos de
“baixo”, e dão pouca importância aos efeitos de exclusão e diferenciação
social que as suas políticas propõem, mas, acima de tudo, ignoram
sistematicamente que elas falham no essencial, ou seja, que são
ineficazes para os objectivos pretendidos.
A solução é, em vez de
mudar as políticas, acrescentar-lhes mais tempo e é por isso que o coro
da “austeridade” para décadas é cada vez maior e será ruidoso depois da troika mandar
aterrando cá, para mandar a partir de Bruxelas. Aliás, será um
interessante exercício ver o que nos diziam em 2011, sobre os resultados
que já se deveriam ver em 2012, e o milagre de uma economia pujante
“libertada do Estado”, já em 2013, e que agora é de novo prometida em
2014. Se diminuíssemos a dívida e défice em função das “intenções
proclamadas” para o ano seguinte, já estávamos a cumprir o Pacto
Orçamental.
Alguns jornalistas sabem que é assim, que a linguagem
do poder se estabeleceu de forma acrítica na comunicação social, e aqui e
ali tentam funcionar a contracorrente. Mas as redacções estão muito
degradadas, com meios muito escassos, o trabalho precário, barato ou
quase gratuito, pouco qualificado, prolifera e o emprego está sempre em
risco, pelo que a prudência exige muita contenção. Por outro lado, o
papel crescente da “comunicação” profissionalizada, a que Governo e
empresa, recorrem cada vez mais, exerce uma pressão considerável no
produto final da comunicação social, em particular na informação
económica. A isto se junta o proselitismo na Rede, nos blogues e no
Facebook, nos comentários anónimos, às claras ou em operações “negras”
de assessores militantes e amigos dos partidos do Governo, à procura de
um lugar ao sol, ao exemplo do que um destes operacionais revelou
recentemente numa entrevista à Visão.
Por isso, neste
combate pelas palavras de 2014, o Governo parte em vantagem, não porque
tenha razão, mas porque tem mais meios e, pior ainda, conta com a força
que num país pequeno, fragilizado, com uma classe média empobrecida, com
uma opinião pública débil, tem o discurso que vem do lado do poder. Já
acontecia com Sócrates, acontece com Passos Coelho.
Historiador
IN "PÚBLICO"
28/12/13
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