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O conflito entre
as memórias e os anúncios
A tradição da temática da ordem mundial é
marcadamente regional, pelo que respeita à pluralidade de povos e países
que constituíram, até ao fim da guerra de 1939-1945, o que chamamos
ocidentais. Que viveram séculos em conflitos de poderes, que viriam a
chamar-se soberanos, sem excluírem a ocidentalidade mas sem evitarem a
conflitualidade de interesses a resolver pela guerra. Não faltaram nunca
os teóricos do pacifismo, em regra considerando apenas o pensamento
europeu cristão, depois ocidental: desta visão bastará lembrar Camões,
que vincava a coincidência entre cristandade e europeísmo, sendo
Portugal "cabeça da Europa toda", até Kant com o seu projeto de Paz
Perpétua.
O conhecimento geográfico, e
por corolário, conhecimento do pluralismo étnico, cultural e religioso
da população humana, teve a sua primeira grande origem nas navegações
portuguesas, e dessa experiência se evoluiu para os projetos que vieram
primeiro ensaiar a paz efetiva, pela Sociedade das Nações depois da
Primeira Guerra Mundial, entre os ocidentais detentores do domínio
mundial, e depois pela ONU, no fim da Segunda Guerra Mundial, com a
ambição de finalmente pacificar o globalismo mal sabido em que nos
encontramos. Está desaparecida praticamente a geração que viveu ambas as
guerras, e está no poder a que vive as consequências da segunda, que
por vezes tomou por um novo mundo porque ainda não teve experiência
avaliada de a ONU ter coincidido com o início do outono ocidental. Já
foi tão debatida a sua necessária reorganização que o importante nesta
data é sobretudo meditar sobre a situação incerta do globalismo. Digamos
que o eixo da crise global está na falta de coincidência entre normas e
factos, por duas vezes tentada depois de duas guerras mundiais.
Lembrarei que os textos legais foram então escritos apenas por mãos
ocidentais, e que as palavras mudaram facilmente de sentido quando as
novas culturas em liberdade começaram, pela primeira vez na história, a
falar com liberdade.
Por isso
rapidamente pôde concluir-se que os fundadores da ONU não ganharam a
guerra, apenas não a tinham perdido. Por isso a igualdade das nações, o
mundo único, a terra casa comum dos homens, foram realmente princípios
substituídos pela Ordem dos Pactos Militares, caraterizados por um
conflito entre o Plano Ocidental de levar a unidade do Atlântico aos
Urales e o plano Russo de a levar dos Urales ao Atlântico. A chamada
guerra fria, como lhe chamou Aron, verificou-se apenas no Norte do
Globo, porque no Sul os conflitos foram tremendos. Incluo, na dissolução
do Império Euromundista, a guerra no antigo Ultramar português, parte
do Império Euromundista. Para simplificar, tomemos como exemplo a guerra
que nessa dissolução afetou a França que se considerou a "Luz do
Mundo".
A sua evolução, que se mostra
mais influenciada pela União Europeia, do que pela ONU, sendo esta uma
forma de unidade que não é Estado, mostra sobretudo três tendências:
uma, a de Marine Le Pen, líder da Frente Nacional, que pretende eliminar
a União; depois, Emmanuel Macron, ministro da Economia, que quer uma
União reformada que perca sobretudo influência, não pelo regresso à
soberania clássica e perdida, mas por considerar que a zona euro, na
definição atual, beneficia sobretudo a Alemanha; por sua vez, François
Fillon, anuncia o que foi chamado "desregulamentação liberal extrema".
Pondo de lado que a exigência de um moralismo económico é comum, também
não parece evitável acrescentar a lembrança da antiga França luz do
mundo, com a rivalidade clássica com a Alemanha, nem que sofra de
esquecimento da soberania tão larga quanto possível. Por seu lado, a
Rússia, que durante o sovietismo juntara Partido e Império, na sua
terceira versão Putin mostra, ao declarar, rodeado pelos seus generais,
que não esqueceu a história nacional, filiada na Proclamação da Igreja
Russa, quando da invasão dos turcos: a primeira Roma caiu, a segunda
Roma caiu, mas a terceira Roma nunca cairá. As divisões que vão das
projetadas quebras nacionais, ao II brexit da Inglaterra, ajudam a
compreender que a memória está a exceder os tratados. Na sua parte mais
negativa, está a relembrança da já antiga conclusão de que o chamado
"terceiro mundo" considera os ocidentais os maiores agressores dos
tempos modernos, o que não leva a considerar a descolonização um
suficiente avanço da ética, mas sim a vitória de um combate.
A
reformulação da ordem mundial, do mundo único e da terra casa comum dos
homens, deverá também esclarecer que a Casa no Alto da Colina, mais
conhecida por EUA, precisa de aperfeiçoar a doutrina, não de a revogar.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
12/04/17
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