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Cultura sem canudos
O lançamento do livro teve lugar em Pêro Pinheiro, num sábado já a cheirar a férias, para os que as podem gozar.
Mais de duzentas pessoas, pela hora do calor, no salão paroquial.
Poucos
dos presentes teriam prática religiosa, mas os espaços anexos ao templo
são espaço aberto a todos. Aquela igreja é do povo.
No caminho, Margarida – que nascera e vivera os primeiros anos da sua vida por ali – ficara chocada com o aspecto de abandono.
Até
as oficinas de Pardal Monteiro, as maiores quando por lá andava,
totalmente fechadas e com sinais de vandalismo, davam um ar
fantasmagórico ao cenário.
Fora terra rica, de trabalho, de vidas
de milhares de operários da indústria dos mármores – e de dinheiro dos
poucos que o possuíam.
Margarida sentiu algo parecido com o que
sentira da única visita que fez a Buenos Aires, no tempo dos coronéis.
Quando esperava uma capital a explodir de actividade, encontrou dezenas
de ruas com as lojas fechadas, cheias de pó, cujos donos não teriam tido
tempo para se desfazer dos seus bens antes de fugirem ou serem presos.
Havia mais de cinquenta anos que não penetrava no miolo da vila, daí a sua surpresa e mágoa.
Quando começou a ver entrar as pessoas, o seu coração foi aliviando.
Aquelas
pessoas que pertenciam a um passado remoto, muitas delas da sua idade,
davam a imagem de personagens adequados ao tempo e à acção.
Naquelas paragens, bebera intensamente a cultura operária nos anos cinquenta do século passado.
Cultura construída lentamente, como a água e a areia moldam o calcário bruto e o transformam em calhaus rolados em Magoito.
Cultura transmitida por operários/artistas/sábios.
Música, teatro, colectividades de cultura e recreio, sindicatos semi-clandestinos, para fintar o Ministério das Corporações.
À medida que a pequena multidão se vai juntando, a tristeza esvai-se quase completamente.
Imponente
nos seus noventa e cinco anos, o senhor Manuel Dias Pereira,
carinhosamente chamado ‘Manel da música’, poeta, músico, pensador livre e
sindicalista, dirigia-se para ela como se se tivessem despedido na
véspera. Só não trazia o violino, mas trazia livros para lhe oferecer.
Aquela gente, gente de que a Margarida se sentia parte, tinha sabido lutar e crescer.
A
escola dera aos filhos deles possibilidade de mudança social. Muitos
possuem graus académicos não oferecidos ou comprados mas conquistados
com o esforço normal de quem sobe a pulso uma ladeira íngreme.
Duvido, no entanto, que muitos deles sejam mais cultos que os pais.
Ali,
no palco do salão paroquial, o João Catalão teve o seu dia de glória:
Reflexões à solta é um ensaio de cultura filtrado por sofrimento, amor,
resistência e humildade.
A mediocridade tinha ficado nos corredores dos poderes.
Hirto, o canteiro de mármore, sozinho dava ao palco a dignidade exigida.
Cantando
à capela um hino aos homens e à pedra que moldaram durante centenas de
anos, um deles deu à cerimónia a força de um ritual.
IN "SOL"
16/07/12
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