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Agosto na Cidade
Já sei que receberei muitas mensagens, dizendo que pelo menos agora a(s) Baixa(s) estão vivas, os edifícios arranjados e a(s) cidade(s) valorizada(s)
Antigamente, em plena silly
season e à falta de tema que alimentasse a actualidade, o Agosto em
Lisboa era tema comum para os cronistas da nossa praça. Gabavam o
sossego, a abundância de lugares para estacionar, a disponibilidade dos
melhores restaurantes, a ausência de filas nas caixas de supermercado, o
trânsito desafogado e até a falta de portagem na ponte. Era um paraíso
de trinta e um dias, um providencial tema para a crónica da semana, e
uma forma de sentir menos inveja de quem estava a banhos no Algarve, no
meio das filas, sem espaço para estender a toalha e tentando sobreviver
ao stress familiar. Lisboa é que era!
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Pois
chegados a 2018, esse clássico da crónica estival deixou de fazer
sentido. Em Lisboa não há época baixa e o inferninho continua. Filas no
aeroporto e na ponte, onde se paga na mesma, em todas as artérias
principais, em todas as ruas da Baixa, e nas entradas dos seus parques
de estacionamento. Restaurantes cheios e um cínico “ai não tem reserva?”
cada vez que temos a ousadia de perguntar se por acaso há mesa para
dois. Ruas lotadas de turistas, como em Roma, Paris ou Barcelona. E um
nível de stress equivalente ao de Albufeira, Armação de Pêra ou
Quarteira em pleno pico da época balnear.
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No
Porto acontece o mesmo e já lá vai o tempo das lojas e cafés fecharem
uma semanita em Agosto para descanso do pessoal. Temos hordas de
europeus famintos por francesinhas. Temos hordas de senhoras de
meia-idade sedentas por atoalhados. Temos hordas de apreciadores
desejosos por bebericar um cálice de vinho do Porto. Temos pessoas em
elétricos, autocarros panorâmicos de dois andares, barcos a imitar os
rabelos, mesas de bares movidas a pedais e em todo o tipo de veículo
turístico mais ou menos barulhento. Temos multidões nas filas para o
bolinho de bacalhau, para o sorvete artesanal e para o pastel de nata
(que é de Lisboa mas não importa, porque em Barcelona também se vê
Flamenco e as pessoas gostam muito)!
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Resumindo,
acabou o sossego e já ninguém fica na cidade em Agosto com a alegria de
um adolescente que se vê sozinho em casa. Sobretudo se, como eu, tem de
aturar o Airbnb do andar de baixo e tentar dormir com os ecos das tainadas no logradouro, onde no outro dia houve até uma dança erótica, de stripper
contratada a meio da tarde, para toda a vizinhança ver. Claro: velhotas
indignadas, maridos desgostosos por não terem estado em casa àquela
hora, crianças mandadas para o quarto e queixas para a proprietária do
rés-do-chão. Lisboa em Agosto é que é!
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Ora,
como é costume quando escrevo sobre os impactos do turismo nas nossas
vidas, já sei que receberei muitas mensagens, dizendo que pelo menos
agora a(s) Baixa(s) estão vivas, os edifícios arranjados e a(s)
cidade(s) valorizada(s). Vou receber emails dizendo que dantes ninguém
ia ao centro, que ninguém lá vivia, que ninguém queria saber e que toda a
gente tinha medo de lá passar. E vou ter de responder que não é
verdade. Que a cidade não se faz só do restauros dos edifícios. Que vivi
na Baixa de Lisboa até 2006 e na Baixa do Porto até 2011, e que além de
nunca ter tido medo ou qualquer episódio que o justificasse, nunca
deixei de sair à rua, de sair à noite, de fazer vida e de aproveitar a
cidade. E que como eu havia mais gente, destemida e resistente, que
gostaria muito de poder continuar a fazê-lo.
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Vou
ter de dizer, novamente, que essa narrativa, sendo uma generalização, é
falsa e só é proferida pelos que, por desinteresse, não passavam nem
perto. E repetir que esse “despreendimento”, de quem prefere perder o
direito à cidade, sentindo que “pelo menos” está bonita e cheia de gente
(que pode pagar), é como aquele romantismo bacoco de novela. Ao estilo
já-que-não-podes-ser-minha-espero-que-sejas-feliz-com-outro-melhor-do-que-eu,
com direito a um franzir de sobrolho à Tony Ramos canastrão, que chega a
ser a pior do que passar um Agosto inteirinho na cidade.
IN "VISÃO"
23/08/18
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