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Política é tempo
Como todos os políticos, Soares pode ter errado muitas vezes nas coisas pequenas. Como poucos, acertou na grande.
São várias as artes de que é composta a política. Para o desenho
institucional e constitucional, a arquitetura. Para encontrar as
palavras, a literatura. Para a representação do poder, a cenografia.
Para a oposição de ideias e temperamentos, o drama. Para mover as
pessoas, o arco narrativo do cinema. Para as juntar, a arte mais
profunda que é a da psicologia, a leitura das almas. A política é uma
arte de artes. Ninguém domina todas elas.
Mas fazer política — essa é a arte de ler o
tempo. Como a música, portanto. Ler o tempo não é fácil. Para quem não o
tenha de instinto, só se ganha com muita observação, mas toda a vida
humana é feita de tempos, de ritmos que se cruzam. Há tempos longos,
mais sinfónicos, e tempos curtos, mais metronómicos, e por cima dessa
estrutura há uma total cacofonia de palavras e modas, exigência e temas,
todos os dias, todas as horas, para confundir os incautos.
Os
políticos medíocres correm atrás do assunto do dia; os políticos
talentosos antecipam os assuntos dos próximos meses, do próximo ano.
Ambos cantam atrás da música, pior ou melhor. Os grandes políticos
entendem ou pressentem a estrutura que lhes permite introduzir novos
temas, marcar um ritmo diferente, efetivamente mudar a música. Sabem
quando as pessoas se cansam, quando um tema se esgota; conseguem
distinguir entre o que as pessoas dizem e a razão por que o dizem, que
nem sempre é coincidente com aquilo que querem. E depois, erram, muito —
porque a ninguém é possível prever tudo.
Durante o século XX,
Portugal mudou muito, mas não foi definido por muitos políticos. Começou
com João Franco, que teve esperanças de mudar o sistema político a
partir do apoio do rei — e cujo projeto morreu com o próprio rei. Depois
com Afonso Costa, mais bem sucedido, que emergiu com um novo regime — a
República — e o esticou até aos seus limites. E a seguir Salazar, por
alguns critérios o político mais bem sucedido do século — foi o que mais
tempo esteve no poder, e que poder mais completo exerceu — mas
profundamente o mais fracassado. O Portugal que Salazar quis não existe;
o que sobra é entendido como causa do nosso atraso.
Soares sempre
se quis entender como anti-Salazar, e conseguiu-o. O Portugal dele era o
oposto solar do país do ditador. Em vez de reclusivo, sociável; em vez
de sisudo, alegre; em vez de desconfiado, aberto aos outros e ao futuro.
Contra todas as expectativas, foi esse Portugal que vingou e Soares o
político que definiu o resto do nosso século XX. De Cunhal a Sá
Carneiro, de Eanes a Otelo, de Maria de Lourdes Pintasilgo a Freitas do
Amaral, não faltavam à época personalidades fortes, mas só Cavaco Silva
se aproxima da marca que Soares imprimiu à IIª República, cuja
longevidade e importância já supera em muito a Iª.
Como conseguiu?
Sendo ele mesmo, não imitando ninguém, e sabendo ler o tempo. Ganhando
autonomia política na oposição democrática para poder agir por si depois
da revolução, e a seguir à revolução acertando naquilo que os
portugueses queriam: um estado social com liberdade. Aos noventa anos de
Soares, ainda é uma liberdade com estado social que os portugueses
desejam. Como todos os políticos, Soares pode ter errado muitas vezes
nas coisas pequenas. Como poucos, acertou na grande.
IN "PÚBLICO"
08/12/14
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