Na aplicação da nova legislação que
regulamentará as relações comerciais entre produção e distribuição, o
designado PIRC – diploma sobre Práticas Individuais Restritivas do
Comércio – vai haver dois vencedores, defendeu hoje Miguel Sousa Ferro,
durante uma conferência promovida pela Centromarca.
O académico e jurista, especialista em lei da concorrência, defendeu
esta sexta-feira, perante a audiência do evento da associação portuguesa
de empresas de produtos de marca, que há dois grandes vencedores da
nova legislação: “as empresas estrangeiras a operar em Portugal e os
advogados”.
E explicou porquê. Primeiro pelo “âmbito da aplicação” da legislação,
porque, na opinião de Miguel Ferro, no novo diploma “estou a
discriminar negativamente as empresas com sede em Portugal”. O âmbito da
lei remete desde logo para a aplicabilidade da lei “às empresas
estabelecidas em território nacional”. Depois, continuou, porque a
aplicação da lei é extra-territorial, deixando espaço para que se
aplique portanto a empresas nacionais na sua actividade fora de País.
A constitucionalidade colocou-se no quarto ponto da apresentação do
professor da faculdade de Direito de Lisboa, que assumiu desde logo ter
feito uma leitura “académica” do diploma durante vários dias. É que
recordou, as coimas agora previstas no novo diploma do PIRC permitem que
a mais alta coima praticada seja 600 vezes mais elevada do que a mais
baixa. Ora, o Tribunal Constitucional já se pronunciou no passado que
uma diferença de 500 vezes “viola o princípio da legalidade”, afirmou.
O quinto problema detectado pelo especialista em Concorrência durante
os “três a quatro dias” em que se debruçou sobre o novo diploma, disse,
decorre do facto da designação de “agente económico” ser “substituída
por empresa”, o que na prática afirma, defendeu Miguel Ferro, que “não
está proibida a venda com prejuízo a uma cooperativa”, por exemplo.
“O grande desafiado”, afirmou assim Miguel Ferro, “é a ASAE”
[Autoridade de Segurança Alimentar e Económica], entidade que passa a
associar à sua actividade de investigador a de instrutora única do
processo (por oposição ao actual diploma, em que a Autoridade da
Concorrência é que fica com a responsabilidade de instrução). O jurista
considera que, ao reforçar competências, a ASAE “vai ter de ser uma
especialista em Direito da Concorrência”.
Também por esse facto, de passar a caber só a ASAE competências que
até agora – e na lei actualmente em vigor – eram divididas com a AdC,
poderá ocorrer o “concurso efectivo” entre este diploma e a lei da
concorrência que se mantêm e que regulamenta o mercado interno. Na
prática, caso a leitura resulte em sobreposição, os operadores poderão
sofrer “coimas astronómicas”, ressalvou.
Miguel Ferro enumerou ainda várias dúvidas, que a sua leitura do
diploma não desfez: “o legislador manda cessar a validade dos contratos
findo um ano” de vigência? “O que é que está abrangido pelo segredo
comercial” quando se fala em negociação entre as partes?
Só no artigo artigo 5.º, relativo à “venda com prejuízo”, “vamos ter
muitas teses de mestrado e doutoramento”, defendeu Miguel Ferro. Como,
exemplificou, “vamos calcular o preço de venda” quando a definição exige
que este seja líquido dos pagamentos ou descontos que se relacionem
directa e exclusivamente com a transacção dos produtos em causa”?
Ainda sobre o mesmo artigo, Miguel Ferro assumiu: “não consegui
perceber como é que se consegue aplicar de forma útil” o clausulado
sobre os descontos com cartão. “Não sei o que o legislador queria dizer,
mas sei que não disse o que queria dizer”, ironizou.
Finalmente, na enumeração das suas dúvidas de interpretação do novo
diploma alertou a plateia, público na sua essência representativo do
lado da produção agro-alimentar, que “uma empresa pode ter que pagar uma
contra-ordenação por um erro numa factura de um fornecedor”.
Manhã de debate passada, a conclusão de Miguel Ferro foi clara: “não devíamos ter um labirinto [jurídico] deste”.
“No labirinto jurídico” poderá haver um terceiro vencedor
“Não sei se serão apenas dois, os grupos vencedores do diploma”,
contra-argumentou Gonçalo Anastácio, advogado da SRS Advogados. “Mesmo
no seio da grande distribuição”, defendeu, “pode haver algum equilíbrio”
entre quem terá mais ou menos possibilidade de suportar vendas com
prejuízo.
Sobre a constitucionalidade das coimas, ao contrário de Miguel Ferro,
Gonçalo Anastácio não vê que esta seja “uma questão”. Se fosse
inconstitucional o que está agora espelhado na nova lei, então também o
seriam as coimas aplicadas até hoje pela AdC, que exigem o pagamento de
10% do volume de negócios dos operadores infractores.
Na divisão de tarefas entre ASAE e AdC, foi o próprio inspector-geral
da Autoridade que levantou outra questão, de eventual sobreposição. Não
de coimas, como questionou Miguel Ferro, mas de quem julga o quê. É que
antes os visados pelas coimas, quando em processos instruídos pela AdC,
recorriam para o Tribunal da Concorrência. Agora a impugnação irá para
tribunal comum – o que levanta dúvidas sobre jurisdições distintas.
Ainda assim, Pedro Portugal Gaspar está preparado para que a
Autoridade irá ser “inundada por impugnações” com o novo diploma. O
inspector-geral da ASAE afirmou contudo que a organização que lidera e a
AdC estão a “trabalhar intensamente na transferência de processos”.
Gonçalo Anastácio, que reconheceu que “tem trabalhado como advogado
do lado da produção”, está contudo convicto que “este diploma em
concreto terá uma série de questões jurídicas para derimir”, defendendo
que “a auto-regulação seria conveniente para evitar excesso de
litigância”.
Mais consensual é Eduardo Diniz, director do Gabinete de Planeamento e
Políticas do Ministério da Agricultura: ainda que a litigância aumente,
é melhor do que ter uma legislação que tem mais de 20 anos a vigorar,
como a actual. Para já, defendeu, “está toda a gente mais atenta” às
relações entre distribuição e produção.
A própria lei que vigora sobre as PIRC, que entrará em vigor a 25 de
Fevereiro próximo, prevê uma avaliação intercalar da aplicação do
diploma dois anos após a sua entrada em vigor.
* Os pequenos fornecedores continuam bem lixados e advogados a esfregar as mãos com boas prespectivas de negócio, as omissões da lei são um imenso pantanal.
Este parlamento não dignifica a política.
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