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Envelhecer assim
Os velhos estão a morrer. E nem todos de corona.
Este final de ano levou mais uns tantos, entre eles o Carlos do Carmo, o
príncipe na cidade. Sobra uma mágoa seca, tão seca como aquele fado sem
música que o Carlos cantou junto ao caixão do José Cardoso Pires, há
muitos anos, e que foi a comovente despedida. Na Biblioteca das
Galveias, a biblioteca pública onde José Saramago se refugiava a ler os
clássicos enquanto trabalhava num emprego diminutivo, sabendo que havia
mais na vida do que gastar as horas sem pensar. A voz do Carlos do Carmo
ecoou no silêncio, cantou o fado sem um tremor, num desgosto limpo.
Houve quem abandonasse a sala para chorar fora dali. Aquela emoção não
podia ser quebrada com choraminguice. Só com a voz. O heroísmo da voz.
A safra deste ano dá-nos certeza de que uma geração ilustre não
dobrou o cabo das tormentas. E viveu o último ano da vida numa clausura
de pestíferos. Entramos em janeiro, um mês cruel para os velhos, um mês
duro e metálico, um mês escarpado e que corta a pele como aço, um mês
gelado e indiferente, com medo. Não há pior modo de entrar no ano novo.
Toda a gente, naquela altura da vida a que se convenciona chamar “de
certa idade”, tem medo. Pode não tomar todas as precauções, por incúria,
por bravata, por desatenção ou por falso sentido de segurança, isto não
me acontece a mim, mas o medo está lá, acoitado como um animal selvagem
na caverna, à espera. Não há sentimento mais fácil de detetar do que o
medo. Não são precisas palavras, o medo lê-se no corpo, e lê-se com
clareza no corpo dos velhos.
Esta semana, ao visitar um hospital encontrei uma sala de espera
cheia de velhos, homens e mulheres, uns mais novos, nos setentas, outros
mais velhos, depois dos setentas. Os mais novos estavam sozinhos, e
pela posição do corpo nas cadeiras via-se que não estavam confortáveis. O
corpo torcido, virado para dentro, procurando ocultar-se. O corpo
desconfiado e obrigado a distância. Ninguém falava, agora não podemos
falar, o vírus não gosta da mudez e temos de contrariar o vírus. Este e
os outros, os do inverno, os da gripe, os rinovírus, esse cardápio de
doenças do frio que foram remetidas para plano secundário.
Os mais velhos estavam acompanhados. À minha frente, um homem muito
velho seguia com uma mulher mais jovem, mas não jovem, que lhe segurava o
braço e vigiava o passo. O velhote caminhava em passinhos trémulos,
como uma criança a aprender a andar. Caminhava curvado, e notava-se que a
altura do esplendor da vida não tinha sido aquela, tinha sido mais
alto, a velhice obrigava-o a curvar-se como um prédio empenado. Os
passos eram pequenos, um bocadinho de cada vez, e atravessar a sala
tornava-se uma viagem de minutos. A mulher devia ser a filha, a criança
que ele educou e da qual cuidou e que agora foi chamada a fazer o mesmo
por aquele pai-criança, aquele pai destituído de poder ou controlo sobre
o mundo. A inversão é clara, e inevitável.
Um
velho tem tantas coisas de criança, incluindo a impaciência e a lágrima
fácil. Depois de anos de repressão das emoções por uma cultura que não
as aprecia, os velhos choram com facilidade. Mesmo que finjam que não
choram. Uma parte dessas lágrimas acresce ao conjunto de indignidades da
velhice, o olho húmido perpétuo, outra parte deve ter a ver com a
desinibição, e uma terceira com a certeza de que tudo se torna tão
difícil com a idade, desde descascar uma laranja a desrolhar uma água
das pedras. Os ossos perderam a força e a pele engelhada recusa ficar
com tudo a cargo. O corpo deixa de responder às mais pequenas coisas,
numa teimosia que obriga a pedir ajuda para atravessar dois metros
quadrados.
O poeta T. S. Eliot tem um poema enigmático, “The Love Song of J.
Alfred Prufrock”, de 1917, poema do tempo da guerra e da peste, em que
Prufrock pergunta se ousará perturbar o universo, se ousará comer um
pêssego. E sabe que ao envelhecer enrolará a dobra das calças. “I grow
old… I grow old…/ I shall wear the bottom of my trousers rolled.” Tantas
interpretações críticas sobre esta “Canção de Amor de J. Alfred
Prufrock”. Para mim, e este é o poema preferido, o que aprendi de cor
desde que o li a primeira vez, nunca houve outra interpretação. O poema
da despedida, o poema do fim das coisas, do fim do amor e do amor do
corpo, o poema da memória dilatada pela lucidez, o poema da vida medida
em colherinhas de café, a vida de alguém que ouviu o canto das sereias,
que não foi o príncipe Hamlet nem estava destinado a ser, e que no
monólogo da gloriosa introspeção consegue reduzir as perguntas a uma.
Ousarei perturbar o universo?
Ao contemplar os velhos do hospital, o medo dos corpos assustados com
a novidade incompreensível da doença que gosta de atacar os velhos, os
doentes, os pobres, os fracos, recitei o poema em pensamento. Os livros
ainda dão consolo. O medo dos velhos, o medo daqueles olhinhos húmidos
atrás das máscaras, analisando o espaço em volta e os perigos que o
habitam, o medo dos monstros lunares e marcianos da ficção científica, o
medo do que é estranho, é uma crueldade a acrescentar às outras. Não se
trata já de enrolar as calças porque a altura diminui, ou de não
conseguir comer um pêssego porque escorrega das mãos e os ossos não
seguram os sólidos, trata-se de sobreviver à solidão a que este vírus
condenou os velhos. A um terror vivido em solitário, atrás de vidros e
de janelas e portas, atrás do escudo da proteção a que foram condenados.
Conheço velhos que passaram a noite de Natal e a noite de fim de ano
sozinhos nas casas. Muito pior do que ver um pêssego escapar das mãos.
Pior quando a memória ainda segreda, foste em tempos uma pessoa inteira,
tiveste poder sobre ti e sobre os outros, dominaste o mundo com a tua
força, mediste a vida em colherinhas de café porque escolheste medi-la
assim. E ouviste o canto das sereias. E sabes que não cantarão para ti,
escreve Eliot.
Já tivemos outras pestes. No tempo da tuberculose, os doentes
refugiavam-se e pensavam em solidão enquanto o mundo lá fora continuava
composto. A tuberculose produziu obras-primas da literatura, como “A
Montanha Mágica”, de Thomas Mann, e produziu mestres da escrita como
Albert Camus, que quando teve tuberculose em novo passou o tempo a ler e
assim se fez escritor. Deste vírus, não sairá o génio das artes. A
tecnologia instituiu outras formas de comunicação e de pensamento, ou
aboliu o pensamento. O telemóvel de última geração não salvará os
velhos. Já ninguém lê livros. E a idade não deixa ler. Na solidão das
salas e das casas, a companhia que lhes resta, no cansaço do dia, é a
televisão. No hospital, no consultório, na espera, lá está ela, a luz
azul acesa com pessoas dentro que falam com uma felicidade fingida,
infantil, para alegrar os velhos.
* Escritora
IN "EXPRESSO" - 08/01/21
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