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HOJE NO
"i"
Memórias de quem viveu
.a redação do "DN"
Veja os testemunhos de jornalistas do "i" que passaram pelo Diário de Notícias
Ana Sá Lopes
O feng shui da Av. da Liberdade
Na minha infância-adolescência sempre houve um matutino e um vespertino.
E o matutino era o “Diário de Notícias”, a sul, e o “Jornal de
Notícias” nas férias de Natal, Páscoa e grandes, a norte. Fazia-se fila
para ler o jornal. Mesmo quem não tinha ainda idade para compreender o
“artigo de fundo” estava na bicha. Uma das imagens nítidas que tenho era
a minha avó Teresa a fazer uma interrupção diária das suas tarefas para
ler o jornal. Era o seu momento de tranquilidade, sempre a seguir ao
almoço, em cima da mesa da sala - o sítio mais confortável para ler um
diário no tempo em que os jornais eram enormes.
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Muitos anos mais tarde, também eu acabei por ir trabalhar para o
“Diário de Notícias”, ainda no tempo em que funcionava no edifício
carregado de história e deslumbramento arquitetónico da Avenida da
Liberdade. Revi amigos e fiz novos amigos naquela redação onde,
confesso, tive um choque no primeiro embate: habituada à jovialidade da
redação do “Público”, entrar numa instituição tão formal fez-me alguma
confusão. O “ar” da casa era esse - a história centenária estava cravada
em cada centímetro de parede e isso transferia-se, numa espécie de feng
shui adaptado, para o resto.
Conheci pessoas fantásticas, amigos para a vida, espírito de
entre-ajuda. Mas também o reverso. A vida em qualquer lado é assim:
genericamente, é-se feliz e infeliz em doses equilibradas. Com sorte.
Diverti-me, exasperei-me, o costume. Qualquer jornal é um empresa
complexa e o DN era-o necessariamente.
A saída do DN das bancas estava a ser preparada há muito tempo, mas
esta semana foi estranho já não o folhear diariamente em papel. O
“Independent” do Reino Unido migrou para o online em 2016. O mundo dos
média está a mudar - para o bem da democracia precisamos todos de muita
sorte, que só se consegue com muitos leitores compradores.
António Rodrigues
A vida segue digital
Tendo nele passado menos de um quarto da minha vida jornalística, é
estranho que continue a ter com o DN relação tão estreita. Até porque,
sendo o primeiro jornal onde trabalhei depois da faculdade, as minhas
andanças jornalísticas haviam começado anos antes numa rádio pirata e
depois num jornal para emigrantes chamado “Lusitano”. E se é certo que
no DN aprendi muito - principalmente com o meu primeiro editor e eterno
amigo Albano Matos, homem sábio, de voz grave, prosa cheia e humor culto
(“e se fôssemos ali a Sevilha comprar livros?”) -, seria depois “A
Capital” a dar-me velocidade, flexibilidade e capacidade de trabalho,
ferramentas fundamentais para a escrita num diário. Mas a relação com o
DN é dérmica, inexplicável - mais ainda porque, sendo eu leitor
compulsivo de jornais desde a adolescência, não lhe tinha dedicado tempo
suficiente, enleado pelas publicações jovens da altura como “O
Independente” e o “Público” e pouco inclinado para o grafismo
envelhecido e o peso da sua vetusta história. E o jornal nem merecia o
alheamento, porque lá dentro havia sapiência e boa prosa, embora, muitas
vezes, o excesso de seriedade o atirasse para o canto dos velhos. Havia
também, da segunda vez que passei pela redação (pelo meio também fui
correspondente do diário na Argentina), um diretor adjunto dinâmico
(António Ribeiro Ferreira, atualmente chefe de redação do i) que me
permitiu durante algum tempo fazer jornalismo internacional longe da
secretária, no terreno. O desaparecimento físico do diário e a sua
transformação em digital, com domingueiras veleidades em papel, é
consequência dos tempos e resposta para o futuro. O papel acaba, o
“Diário de Notícias” segue eletrónico, para bem do jornalismo e das
minhas memórias.
Carlos Diogo Santos
O “cinzentão” com cheiro a tinta
Abrir as portas do 2.º andar do edifício da Avenida da Liberdade era
ainda mergulhar numa redação do antigamente. Sem cor. Há dez anos,
quando os LCD já iam substituindo os plasmas pelo país fora, as paredes
daquele open space ainda carregavam autênticos monos. E no meio de mesas
e armários de ferro cinzentos, apenas os estofos de algumas cadeiras -
azuis - lhe traziam cor. As ventoinhas eram cinzentas, os arquivadores
prateados e os papéis não tinham sítio. Foi apenas há dez anos, mas era
comum ouvir falar das memórias da máquina de escrever - o tema acabava
por surgir mais que não fosse pela forma como alguns jornalistas
tratavam o teclado. Muitos desses e dos das gerações mais novas faziam
as suas pausas nos vários patamares das escadas das traseiras onde, além
de beberem o café das máquinas, se inclinavam nas janelas para fumar.
No meio da agitação diária das notícias, das queixas dos desanimados e
dos gritos dos que todos os dias perdiam a paciência, o “Diário de
Notícias” era um poço de formalidades. E ainda é, quando comparado com
muitos outros. Mas as marcas do passado que tanto demoraram a apagar-se
esbateram-se com o jornalismo dos novos tempos. Aquele imediato, o da
internet, que a nova direção do DN diz ser a aposta. O DN cinzento mas
genuíno já não o era nos últimos tempos da Avenida da Liberdade e muito
menos ficou desde que chegou às novas instalações, em Benfica. Cheias de
cor. A cada mudança de instalações, este DN parece querer adaptar-se à
realidade (a saída do Bairro Alto para a Avenida da Liberdade não passou
disso), e compreende-se, uma vez que nos últimos anos o seu papel, com
aquele cabeçalho de letra Gothic, não conseguiu afirmar-se
(infelizmente, como aconteceu com muitos outros). Espero que o caminho
agora iniciado traga um futuro risonho, mas não esqueço que o “meu” DN
será sempre aquele outro que tinha cheiro a tinta todos os dias.
Davide Pinheiro
Memórias de um futuro
Quando o meu avô e (segundo) pai por comoção voltava da Marinha,
encontrava-se com os amigos no Café Central. Todas as cidades, vilas e
aldeias têm um Café Central. E comprava o “Diário de Notícias”. Aquele
pedaço de papel era um portal de acesso ao mundo. E para a minha avó
devorar artigos de opinião. Do Café Central. A tinta sujava, as letras
eram pequenas e a drive A: do computador Schneider pedia por disquetes
como um depósito argumenta por gasolina, mas se não fossem esses
anoiteceres pós-leituras para o meu avô Alexandrino, e pós-estudos e
Itália 90 para mim, enquanto a minha mãe desesperava no trânsito da 25
de Abril, este instante não teria cabimento. O “Diário de Notícias”
apresentou-me aos jornais, antes dos desportivos e do “Blitz”, e os
jornais deram-me mundo. Antes da internet. E da primeira viagem a
Londres, em 1996. Quando entrei pela primeira vez na redação, para
conhecer as instalações e as pessoas antes de o estágio começar,
senti-me como o miúdo que vai todos os domingos ver o Benfica à Luz
atrás da baliza e um dia sobe à equipa principal. Como qualquer rapaz
que um dia sonha ver o nome impresso nas páginas de um jornal, há um
tempo inicial de fascínio. E um acordar para a realidade, que, como em
qualquer equipa, o balneário tem problemas. Em 2005, as dúvidas ainda
eram só sobre o “Diário de Notícias”. O jornalismo como o conhecíamos
não era questionado. E para a redação, a internet era um exotismo
inconsequente. Não era uma ameaça, nem um possível aliado. Só um monstro
de abate fácil que haveria de cair de morte natural. Para um rapaz
sedento de conquistar o seu espaço com novas ideias - foi através do DN
que soube o que era um blogue -, a fantasia era muito melhor que o real.
E a memória desse futuro também.
* O "DIÁRIO DE NOTÍCIAS" foi o "jornal", desejamos que seja uma saudável memória.
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