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Os especialistas
Há Especialistas em qualquer ramo: médicos, enfermeiros, recepcionistas, veterinários, advogados, professores, vinicultores, maquilhadores, jornalistas, cozinheiros, lojistas, baristas, psicólogos...
Estamos a ver televisão, e de repente aparece o Especialista. O
Especialista tem algo para nos contar e está a ser entrevistado por um
jornalista ou apresentador. Não fala de astrofísica, mas de um assunto
mais quotidiano, como o tempo, um problema de saúde, as necessidades
educativas de uma criança de sete anos, o modo de aplicar maquilhagem,
bolos reis — esse tipo de coisas.
O Especialista entrevistado pode ser meteorologista, médico,
farmacêutico, assistente de loja, padeiro ou ter outra qualquer
“especialidade”, mas seja esta qual for, o Especialista faz sempre uma
coisa que me põe doida: fala connosco como se fôssemos crianças.
O Especialista descreve-nos o problema, a ideia, o desafio ou o bolo
como se nunca tivéssemos ouvido falar de tal coisa. Faz sempre uma lista
comprida, com todas as coisas que o clima é capaz de fazer, ou os
cuidados que devemos tomar a propósito disto e daquilo, ou como aplicar
batom esta semana, ou como é importante a tradição de fazer o buraco nos
bolos reis com o cotovelo (como se não víssemos as reportagens sobre os
bolos reis todos os natais). O Especialista desenrola a lista no tom de
quem, todos os dias, ensina às crianças coisas importantes, num estilo
pomposo e cansado:
Apresentador da TV: “A temperatura vai subir esta semana, o que avisa?”
Especialista entrevistado pela TV: “Bem,
• Beba muitos líquidos
• Vista roupa fresca
• Aplique protector solar de alto factor
• Não saia da casa
• Não aplique batom até estar mais fresco
• Não faça bolo rei na praia com o seu cotovelo…”
(ok, misturei uns quantos Especialistas nesta entrevista…)
Não sou a pessoa mais paciente do mundo, e já tenho saído da sala
sempre que um Especialista começa a enunciar a lista do dia. Talvez seja
só eu e talvez a maior parte das pessoas, de tão habituadas, não
reparem no Especialismo.
A entrevista da TV a um Especialista, porém, é um só dos sintomas do Especialismo.
Especialismo é o que eu chamo ao hábito irritante, particularmente
comum em Portugal, de um profissional não admitir que outra pessoa fora
da profissão possa saber qualquer coisa sobre a sua Especialidade, só
porque não tem o diploma certo. Geralmente, o dito profissional faz-nos
sentir isso adoptando a maneira mais paternalista possível.
Já foi ao médico com uma opinião sobre qualquer dor, apenas para o
médico lhe dizer que não é nada disso (embora, três minutos depois, lhe
esteja a dizer a mesma coisa que você já sabia, mas com palavras
diferentes)?
Nunca uma farmacêutica lhe dirigiu um olhar de desdém só porque, em
vez de receber a grande e generosa sabedoria dela como um coelhinho
fofinho, lhe disse “sim, não há problema, sei o que fazem os
antihistamínicos”?
Já mencionou a um cozinheiro profissional que sim, de facto, sabe
fazer pão ou fazer um guisado de coelho (fofinho), e recebeu uma
resposta de “aaaaahhh, a sério?” como se você fosse uma criança de
quatro anos a cozinhar com plasticina?
Nunca lhe aconteceu deixar um taxista rabugento ainda mais rabugento
só porque se atreveu a notar-lhe que “não, este não é o melhor caminho
para a minha casa”?
É isto que é ser sujeito ao Especialismo. Há Especialistas em
qualquer ramo: médicos, enfermeiros, recepcionistas, veterinários,
advogados, professores, vinicultores, maquilhadores, jornalistas,
cozinheiros, lojistas, baristas, psicólogos, “senhoras que almoçam”,
cabeleireiros, arrumadores de automóveis, colunistas da imprensa, etc.,
etc., etc.
Estranhamente, os Especialistas de uma área parecem dispostos a
submeter-se aos Especialistas de outras áreas. Bem, talvez uma advogada
realmente não saiba fazer a maquilhagem dela própria, ou um médico
realmente não saiba nada de cozinhar, mas duvido.
Realmente, parece-me que toda a gente tem muito mais paciência do que
eu quando aparece um Especialista a tratar-nos como crianças.
IN "OBSERVADOR"
19/10/14
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