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Solo feito à medida
Fazer de conta que não está a acontecer é uma hipótese, sendo que a outra, a da noção da gravidade, tinha 30 dias para ser operacionalizada pelo Parlamento de forma a corrigir uma aberração. A alteração introduzida ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, criando um regime excepcional que permitirá a construção e urbanização em terrenos rústicos por simples deliberação dos órgãos municipais, é um disparate perigoso que alimenta um cardápio de movimentos especulativos, ao mesmo tempo que aumenta, sem ponderar dos custos económicos e ambientais, a oferta de terrenos destinados à construção de habitação pública ou de habitação de valor moderado. A promulgação pelo presidente da República, a 26 de dezembro, entre o Natal e o Ano Novo, passando pelos pingos das festas, é só o pormenor equivalente à antiga fava do bolo-rei. Aqui dão-se brindes.
Num contexto de alterações climáticas e de crise especulativa imobiliária, o Governo entende que se pode construir em solos que deveriam ser usados para a recuperação da agricultura ou da floresta, valorizando-os indiscriminadamente, ao mesmo tempo que tenta colocar entraves fictícios e inaplicáveis aos preços. Contrariando a classificação introduzida por Passos Coelho em 2014 (que diferenciava e classificava os solos em urbanos e rústicos), abre-se o caminho arado para a especulação imobiliária sobre todo o tipo de solos. Não serão mais casas para todos, as que se construirão. Seguramente, só mais abismos entre os que as podem ter e os que continuarão sem esse direito.
Marcelo Rebelo de Sousa refere-se, e bem, a uma entorse. Mas promulgou-a. E se já no Governo de António Costa tínhamos aberto o “Simplex Urbanístico” que alterava a lei dos solos e o regime jurídico dos planos territoriais, eis que tudo agora se torna possível, sem ordenamento ou ponderação do território, sem qualquer alteração dos planos em vigor. No segundo trimestre do ano passado, o valor mediano das casas vendidas elevou-se aos €1736 por metro quadrado (um aumento de 6,6% em relação ao período homólogo). Mas a resposta à subida dos custos com a habitação não pode alavancar-se no facilitismo da disponibilidade sem regras. Tentar resolver a crise da habitação com uma transformação arbitrária de solos, permitindo valores de venda acima do mercado, irá afastar as famílias de mais um direito constitucional. Que isto tenha acontecido sem a intervenção do Parlamento é grave. Agora, mais tarde do que cedo, que a apreciação parlamentar do diploma permita apreciar e reverter uma alteração irresponsável, que promete mudar para pior a identidade e a ocupação habitacional do país.
* Músico e Jurista
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS" - 03/01/25..