Nem “novo”, nem “normal”
A constatação da persistência da precariedade no mercado de trabalho não pode ser um convite à resignação perante o facto.
Apregoa-se em vários sectores da sociedade Portuguesa que a
precariedade vivida na contemporaneidade, e sobretudo pelos jovens, é “o
novo normal”. Em consequência, a compreensão desse “pecado”, cometido
no mercado do trabalho mas que contamina todas as esferas de uma vida,
sai muito enfraquecida.
Tal afirmação, que começa por ser um resultado de uma incapacidade de
descodificar os dados empíricos disponíveis, acaba por se tornar uma
prática perigosa de “self-fulfulling prophecy”, na qual a interpretação
transforma, ou pode transformar, a realidade interpretada. Com
frequência, resulta ainda mais de exercícios ensaísticos e da fast science
(e da pseudo-ciência) do que de análises sistemáticas de dados sobre as
vidas e as trajetórias dos indivíduos, mas sobre isso não me debruçarei
hoje.
O “fetiche pelo presente”, partilhado por muitos
especialistas e interessados nestes temas, impede tanto uma interrogação
consistente do “passado” como um entendimento sustentado do “futuro”.Impede a constatação de que a precariedade não é “nova” e não é normal.
Nem é inevitável.
De facto, se olharmos para o passado recente, isto é, para as
gerações passadas de jovens adultos, verificamos que o fenómeno da
precariedade dos vínculos contratuais, da informalidade da economia, do
trabalho não pago dos “ajudantes familiares”, dos homens e das mulheres
“a dias”, não é uma novidade do mercado de trabalho. Resultados desta
natureza podem ser verificados em dados longitudinais. Apesar destas
evidências, alguns especialistas preferem apontar o copo meio cheio, as
diferenças e as mudanças – que as há – das novas formas e experiências
da precariedade. Evitam olhar para o copo meio vazio e não resistem à
tentação de gritar “eureka” cada vez que uma percentagem se altera numa
determinada categoria de precariedade de uma década para outra. Tais
resultados podem ainda ser confirmados por estudos qualitativos capazes
de dar expressão às experiências de precariedade vividas em contextos
históricos diferentes. A precariedade não é, portanto, novidade. Muito
menos o é em Portugal, onde a economia informal é desde há muito um
traço distintivo da sociedade. A precariedade no mercado de trabalho
também não constitui um fenómeno propriamente “novo”. O mesmo sucede com
o processo de permanência estável ou definitiva no seu interior. A
constatação da persistência da precariedade no mercado de trabalho não
pode ser é um convite à resignação perante o facto. Bem pelo contrário. A
sua longa constância é cada vez menos aceitável. Precisa de ser
combatida sem hesitação.
Um outro aspeto tem concorrido para esta
série de mal-entendidos. Por exemplo, as janelas de observação para a
vida dos jovens adultos tendem a ser muito pequenas. Quando estes passam
a fronteira dos 30 anos, geralmente a análise dos dados estatísticos e
das biografias é interrompida. A suas histórias e trajetórias deixam de
ser contadas. É mais fácil anunciar simplesmente: “E viveram precários
para sempre. O Fim”.
Mas o término de uma investigação não
coincide com o fim da vida dos indivíduos. Se a análise longitudinal
tivesse uma tradição mais sólida em Portugal, e os estudos sobre
juventude disso beneficiassem, os resultados de um estudo qualitativo,
ainda em curso, junto de jovens adultos em Portugal seriam certamente
corroborados por outras pesquisas. Em 2009, 52 jovens adultos “comuns’”,
de “classe média”, na altura dos 26 aos 32 anos, participaram em
entrevistas centradas nas suas biografias. Foram convidados a refletir
sobre as suas trajetórias e planos profissionais, conjugais,
habitacionais e parentais. Ao estudar as vidas destes indivíduos, é
possível identificar as formas variadas através das quais eles tentaram
contrariar a sua condição precária de longa duração. A precariedade não é
“normal” para sempre. Se vivem em condições precárias tempo demais?
Sim.
Mais do que no passado? É possível. Mas encaram essa realidade como
normal, indefinidamente no tempo? Não. Reagem e não se acomodam, ao
contrário do que declaram alguns argumentos que procuram contaminar o
debate público, mais por razões ideológicas do que por qualquer espécie
de sustentação científica.
Tal como o desemprego de longa duração
e outras formas continuadas de exclusão social, a acumulação de
dificuldades e desvantagens sociais é uma bomba-relógio. Os indivíduos
conseguem suportar e “normalizar” estas experiências de precariedade
durante algum tempo. Conseguem continuar a apostar numa determinada
profissão ou posto de trabalho até um certo ponto. Sofrem assédios
morais e injustiças de diversa natureza no trabalho até ao limite das
suas capacidades. Mas há limites, variáveis consoante as condições
sociais dos indivíduos, a duração da precariedade, o agravamento das
condições de e no trabalho, entre outros aspetos. A experiência da
precariedade passa a ser insustentável. Deixa de ser “normal”. “Já
chega”.
Para muitos, a precariedade acumulada e de longa duração
foi um gatilho para grandes decisões e mudanças nas suas vidas. Muitos
dos jovens adultos entrevistados entre 2009 e 2016 mudaram de profissão,
desempregaram-se, voltaram a estudar, denunciaram situações de
injustiça nos seus locais de trabalho, abdicaram de rendimento
provenientes destes trabalhos precários. Frequentemente, não sem antes
entrarem em depressão e terem esgotamentos, ou viverem de forma
sistemática com elevados níveis de ansiedade. Mas, mais adiante na vida
destas pessoas, a precariedade acaba mesmo por ter os dias contados,
pelo menos para um número considerável de casos.
Não se pretende
aqui celebrar a resiliência dos indivíduos nem, muito menos, empurrar
para estes a responsabilidade de travar processos complexos,
macroestruturais, políticos e ideológicos de precariedade. Pelo
contrário. Pretende-se, sim, dar visibilidade aos processos de
precariedade de longa duração, revelando com clareza e de modo
fundamentado as situações limite a que estes têm sido sistematicamente
sujeitos. Essas situações “normais” são inaceitáveis.
Paremos de
dizer que a precariedade é o “novo normal”. Paremos de concorrer na
adivinhação do próximo fenómeno social problemático e de alimentar
profecias travestidas de veredictos (pseudo)científicos. E sigamos o
mote de John Oliver relativamente à eleição de Trump, repetindo vezes
sem conta “isto não é normal, isto não é normal”. É injusto e
inadmissível. Também por que não é “novo”.
IN "PÚBLICO"
23/02/18
.
Sem comentários:
Enviar um comentário