Está por aqui...
O luto, esse longo luto, foi passando devagar quando entendi isso, quando percebi que não teria o futuro, mas tinha o passado e poderia voltar a lembrar-me da minha mãe como quem anda para trás num filme.
A
minha mãe foi-se cedo, antes dos 60 anos e isso marcou-me. Eu não
estava preparada, acho que nunca se está para o que vem depois, para
aquele silêncio em casa e aquela ausência definitiva. Lembro-me de
chorar e de me vestir de preto, ainda confusa e com coração a sufocar e
de pedir, uns dias depois, que me marcassem trabalho no jornal. Eu
estava no princípio de um caminho que só podia ser feito por mim e,
naquele ano de 1995, não sabia ainda que o luto pode durar anos, muitos
anos.
Vivíamos os anos mágicos da fartura, do dinheiro que
parecia jorrar das paredes e a última conversa que se poderia ter com
alguém era sobre perda, sobre sentir-se triste ou só. Os milhões dos
fundos europeus caíam sobre nós, o importante era aproveitar a estrada
acabada de alcatroar, o apartamento novo onde duche tinha muita pressão e
o carro novo. Não havia disposição para mais, uma vez por outra, num
interlúdio, pediam-me para deixar ir.
Deixar ir era uma forma
diferente de pedir para esquecer, parecia-me uma traição à memória
daquela mulher inteligente com quem tinha crescido, que me ensinara a
pensar e a bater-me pelas minhas ideias. Eu não podia esquecer o
espírito inquieto, as nossas conversas ao domingo à noite, de braço dado
pelo caminho no regresso da casa do meu avô. Não era justo deixar ir as
minhas memórias infância, as nossas brigas na adolescência, a
cumplicidade dos últimos tempos.
As memórias eram engolidas todos
os dias por uma novidade. O telemóvel, o computador, os prédios de
apartamentos nos descampados e nas fazendas, as férias com tudo incluído
debaixo do sol tórrido das Caraíbas e registadas pela máquina
fotográfica digital de 10 megapixels. O luto, a dor, os azares da doença
não cabiam neste quadro de gente feliz e rica que deixava as velharias
para trás. De que se falava? Do crédito, da escritura e do último modelo
de telemóvel que, nesse tempo, quanto mais pequeno melhor.
Enquanto
o mundo acelerava para o futuro, que seria ainda mais abastado, eu fui
moendo a saudade que se tornava estranha no Dia da Mãe. Às vezes pensava
no que diria a minha mãe daquele mundo novo, seria capaz de se ajeitar
com um telefone dos novos, de entender a Internet e os casamentos só
pelo civil? E o que diria de viver num apartamento sem vasos nas
varandas? Nunca teria as respostas, a vida era o que era e a minha
história com a minha mãe acabara em 1995, antes de tudo o que
entretanto aconteceu.
O luto, esse longo luto, foi passando
devagar quando entendi isso, quando percebi que não teria o futuro, mas
tinha o passado e poderia voltar a lembrar-me da minha mãe como quem
anda para trás num filme. Eu lembro-me da minha mãe muitas vezes,
lembro-a alegre, cheia de planos e de opiniões, até sobre o Caniggia,
que jogava no Benfica, ou a guerra na Bósnia. O entusiasmo por causa do
Porto, aquela frase que repetia muitas vezes de que “os desgostos da
bola passam depressa” ou última conversa que tivemos sobre o futuro.
Ela
garantiu-me que, se eu tivesse paciência e não desistisse, só poderia
ser bom. E nunca a deixei ir. A memória vive comigo todos os dias, mesmo
quando não tenho noção de, está por aqui, no que escrevo, digo e faço e
só desaparecerá quando eu me for também.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
07/05/17
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