O Governo
não merece
a nossa delicadeza
Um aplauso a um membro do Governo é um gesto político. E este Governo não merece nem o aplauso de circunstância.
Na antiga Roma, para se ser imperador era preciso ser aclamado.
Certamente pelo exército, porque os imperadores eram impostos e mantidos
pela espada, no melhor dos casos também pelo Senado, mas especialmente
pelo povo.
Os aplausos de que o
imperador era objecto no teatro ou nas arenas mediam não apenas a sua
popularidade mas também a sua legitimidade, o nível de aceitação da sua
autoridade pelo povo. Os teatros serviam tanto para medir e reforçar
essa legitimidade como para o divertimento da cidade. E durante séculos,
nas mais diversas regiões do globo, os reis foram ungidos por Deus nas
catedrais mas tinham de ser aclamados pelo povo nas ruas para poderem
ostentar as suas coroas com merecimento. Um rei não aclamado era um
intruso, um impostor, um monarca à espera de ser deposto.
Hoje, a
escolha e a legitimidade dos dirigentes políticos é feita e conferida de
outras formas, graças aos processos eleitorais que a democracia
instituiu, mas nenhum político prescinde de avaliar a sua popularidade
através de sondagens e da sua imagem nos media e existem limites aquém dos quais qualquer dirigente sabe que o seu poder periclita porque a sua legitimidade se perde.
O
Governo actual possui uma legitimidade formal que lhe advém do apoio de
uma maioria parlamentar e da confiança do Presidente da República.
Possui, por outro lado, uma ilegitimidade substantiva que advém do facto
de ter sido escolhido pelos eleitores com base em mentiras eleitorais e
de governar contra a Constituição e contra o povo e ao serviço de
poderes estranhos ao país, em flagrante traição do juramento que os seus
elementos fizeram e da mais elementar noção de patriotismo. Mas,
curiosamente, apesar de ser atacado na arena política e desprezado pela
maioria dos comentadores, o Governo continua a ser tratado pela
sociedade em geral, nos raros eventos públicos onde os ministros e
secretários de Estado se aventuram, como se se tratasse de pessoas
civilizadas e de governantes com um mínimo de decência. Em particular,
não lhes atiram ovos podres nem tomates maduros, quando tudo na sua
acção o justificaria, para não referir o arremesso de objectos mais
contundentes, que pertencem a outro domínio.
Um dos reflexos desse
tratamento normal, com que o Governo é generosamente brindado, é o
facto de os seus elementos serem em geral aplaudidos no final das suas
intervenções públicas, digam as sandices que disserem e anunciem os
atentados aos cidadãos que anunciarem.
É evidente que, com a
excepção de plateias do PSD ou de grandes empresários rentistas, esses
aplausos são o que se chama aplausos “de circunstância”, dados e
julgados devidos por uma questão de mera cortesia, como os que se
oferecem aos oradores para recompensar o facto de terem tido o trabalho
de subir ao palco mesmo quando o que dizem é imbecil ou banal. No
entanto, quando se trata de declarações políticas, como as que os nossos
governantes fazem, os aplausos que se oferecem não podem ser julgados
apenas de circunstância e contêm um carga política de que os aplaudentes
por vezes não se dão conta. Por hábito, por conveniência ou por
ingenuidade, os governantes pensam que os aplausos que ouvem, por
escassos que sejam, avalizam as suas palavras e as suas políticas. E
alguns dos assistentes podem pensar a mesma coisa.
A questão é que
o aplauso que se faz a um político representa sempre alguma adesão ao
que é dito ou a quem o diz. Não é uma questão de cortesia. E não pode
ser oferecido de forma irreflectida.
É fundamental passar a
demonstrar ao Governo em geral e a cada um dos seus membros em
particular que as suas políticas são rejeitadas por todos e a maneira
mais simples de o fazer é retirar-lhes o aplauso que os governantes têm
por adquirido. Hoje, quando são tão escassas as ferramentas de que o
cidadão dispõe para agir politicamente, sequestrado o regime e o Estado
por partidos dispostos a não deixar da democracia pedra sobre pedra, é
fundamental que cada um de nós se apodere de todas as que restam. E uma
delas é fazer-se ouvir pelo silêncio.
Rimbaud escreve num poema
que por delicadeza perdeu a vida. Seria infeliz que os portugueses, pela
mesma delicadeza, sacrificassem o uso de uma das últimas formas de
protestar que lhes resta e preferissem deixar a gente que ocupa o poder
roubar o futuro dos seus filhos.
Não existe cortesia que
justifique pactuar com a barbárie. Não existe etiqueta que se sobreponha
ao exercício da mais básica forma de liberdade de expressão que
consiste em não aplaudir. Não é o último direito que nos resta, mas
quase. O Governo age como se tivesse sido eleito ditador por quatro
anos. Mas a cidadania não pode ser posta fora da lei durante quatro
anos. O mínimo dos mínimos que podemos fazer é garantir que nenhum
aplauso “de circunstância” saído das nossas mãos irá confortar o Governo
na sua certeza de impunidade.
IN "PÚBLICO"
03/12/13
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