06/12/2013

JOSÉ VITOR MALHEIROS

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O Governo 
não merece 
a nossa delicadeza

Um aplauso a um membro do Governo é um gesto político. E este Governo não merece nem o aplauso de circunstância.

Na antiga Roma, para se ser imperador era preciso ser aclamado. Certamente pelo exército, porque os imperadores eram impostos e mantidos pela espada, no melhor dos casos também pelo Senado, mas especialmente pelo povo.

Os aplausos de que o imperador era objecto no teatro ou nas arenas mediam não apenas a sua popularidade mas também a sua legitimidade, o nível de aceitação da sua autoridade pelo povo. Os teatros serviam tanto para medir e reforçar essa legitimidade como para o divertimento da cidade. E durante séculos, nas mais diversas regiões do globo, os reis foram ungidos por Deus nas catedrais mas tinham de ser aclamados pelo povo nas ruas para poderem ostentar as suas coroas com merecimento. Um rei não aclamado era um intruso, um impostor, um monarca à espera de ser deposto.

Hoje, a escolha e a legitimidade dos dirigentes políticos é feita e conferida de outras formas, graças aos processos eleitorais que a democracia instituiu, mas nenhum político prescinde de avaliar a sua popularidade através de sondagens e da sua imagem nos media e existem limites aquém dos quais qualquer dirigente sabe que o seu poder periclita porque a sua legitimidade se perde.

O Governo actual possui uma legitimidade formal que lhe advém do apoio de uma maioria parlamentar e da confiança do Presidente da República. Possui, por outro lado, uma ilegitimidade substantiva que advém do facto de ter sido escolhido pelos eleitores com base em mentiras eleitorais e de governar contra a Constituição e contra o povo e ao serviço de poderes estranhos ao país, em flagrante traição do juramento que os seus elementos fizeram e da mais elementar noção de patriotismo. Mas, curiosamente, apesar de ser atacado na arena política e desprezado pela maioria dos comentadores, o Governo continua a ser tratado pela sociedade em geral, nos raros eventos públicos onde os ministros e secretários de Estado se aventuram, como se se tratasse de pessoas civilizadas e de governantes com um mínimo de decência. Em particular, não lhes atiram ovos podres nem tomates maduros, quando tudo na sua acção o justificaria, para não referir o arremesso de objectos mais contundentes, que pertencem a outro domínio.

Um dos reflexos desse tratamento normal, com que o Governo é generosamente brindado, é o facto de os seus elementos serem em geral aplaudidos no final das suas intervenções públicas, digam as sandices que disserem e anunciem os atentados aos cidadãos que anunciarem.

É evidente que, com a excepção de plateias do PSD ou de grandes empresários rentistas, esses aplausos são o que se chama aplausos “de circunstância”, dados e julgados devidos por uma questão de mera cortesia, como os que se oferecem aos oradores para recompensar o facto de terem tido o trabalho de subir ao palco mesmo quando o que dizem é imbecil ou banal. No entanto, quando se trata de declarações políticas, como as que os nossos governantes fazem, os aplausos que se oferecem não podem ser julgados apenas de circunstância e contêm um carga política de que os aplaudentes por vezes não se dão conta. Por hábito, por conveniência ou por ingenuidade, os governantes pensam que os aplausos que ouvem, por escassos que sejam, avalizam as suas palavras e as suas políticas. E alguns dos assistentes podem pensar a mesma coisa.

A questão é que o aplauso que se faz a um político representa sempre alguma adesão ao que é dito ou a quem o diz. Não é uma questão de cortesia. E não pode ser oferecido de forma irreflectida.
É fundamental passar a demonstrar ao Governo em geral e a cada um dos seus membros em particular que as suas políticas são rejeitadas por todos e a maneira mais simples de o fazer é retirar-lhes o aplauso que os governantes têm por adquirido. Hoje, quando são tão escassas as ferramentas de que o cidadão dispõe para agir politicamente, sequestrado o regime e o Estado por partidos dispostos a não deixar da democracia pedra sobre pedra, é fundamental que cada um de nós se apodere de todas as que restam. E uma delas é fazer-se ouvir pelo silêncio.

Rimbaud escreve num poema que por delicadeza perdeu a vida. Seria infeliz que os portugueses, pela mesma delicadeza, sacrificassem o uso de uma das últimas formas de protestar que lhes resta e preferissem deixar a gente que ocupa o poder roubar o futuro dos seus filhos.

Não existe cortesia que justifique pactuar com a barbárie. Não existe etiqueta que se sobreponha ao exercício da mais básica forma de liberdade de expressão que consiste em não aplaudir. Não é o último direito que nos resta, mas quase. O Governo age como se tivesse sido eleito ditador por quatro anos. Mas a cidadania não pode ser posta fora da lei durante quatro anos. O mínimo dos mínimos que podemos fazer é garantir que nenhum aplauso “de circunstância” saído das nossas mãos irá confortar o Governo na sua certeza de impunidade.

IN "PÚBLICO"
03/12/13


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