Portugal e a extrema-direita
Não há forma de saber em quem votam
preferencialmente os portugueses emigrados em França. Há a ideia de que a
maioria - ou uma parte considerável - vota na Frente Nacional, e de
facto não é difícil nas reportagens em França encontrar portugueses que
apoiam Marine Le Pen, mas com tantas intenções de voto nela na população
geral, e especialmente na dita "classe operária" e pequena burguesia (à
qual pertencerá a maioria dos luso-franceses), tal não será
surpreendente. A não ser por um motivo, claro: todos ou quase todos os
emigrantes entrevistados que declaram apoio a Le Pen dizem fazê-lo
porque ela quer "endurecer a política da imigração". Ouvir emigrantes a
defender tal coisa não pode deixar de chocar. Primeiro, porque aquelas
pessoas parecem não se dar conta da total contradição entre a sua
situação e o que defendem; segundo, porque a explicação dessa ausência
de noção é a ideia de que as políticas de Le Pen, apesar de esta
insistir em usar a expressão "français de souche" (que pode ser
traduzida como "francês de origem", no sentido de "puro") não se lhes
dirigem porque eles são imigrantes "bons", ou seja, europeus, brancos,
cristãos, "esforçados" e "integrados" (aliás, Le Pen costuma elogiar a
imigração portuguesa nesses mesmos termos) - enfim, gente que "não
arranja problemas". Ou seja, muito simplesmente dito: a explicação desta
ausência de noção, se pode ser entendida como pragmática (no sentido de
que pensarão que mais imigrantes prejudicam os que já existem) é também
xenófoba.
Há muito são adiantadas
explicações sociológicas para esta alegada preponderância da
extrema-direita na comunidade luso-francesa - a principal das quais
tendo que ver com o facto de muita dela ter emigrado antes da
instauração de um regime democrático em Portugal e portanto,
paradoxalmente, apesar de o ter feito "a salto" (fora da lei) por viver
em condições miseráveis, subscrever, por não conhecer outra, a cartilha
do regime anterior. Mas, sejam quais forem os motivos, a ideia de que
boa parte dos emigrantes portugueses no país onde há mais portugueses
emigrados votam na extrema-direita choca com o comportamento dos
eleitores em Portugal, considerado, com a Espanha, uma exceção numa
Europa na qual a extrema-direita ganha balanço.
Mas
talvez não haja choque algum. Qualquer pessoa que já tenha feito
reportagem pelo país ou esteja atenta às discussões que permitam aferir
da xenofobia dos intervenientes (nas redes sociais e fora delas) não
pode deixar de se dar conta de que esse tipo de discurso não é de todo
excecional. Veja-se por exemplo o tratamento dado à comunidade cigana
por algumas autarquias; o hábito arreigadíssimo de usar sapos em
estabelecimentos comerciais para "afastar" os membros da etnia (prática
denunciada na curta-metragem de Leonor Teles, Balada de um Batráquio,
que ganhou o Urso de Ouro em 2016); a forma como se noticiam e
normalizam os raides policiais em bairros de maioria negra e a profusão,
no dia-a-dia, de atitudes e comentários racistas dirigidos a negros; a
onda de indignação com a intenção da Câmara de Lisboa de financiar a
construção de um centro comunitário que inclui uma mesquita.
Aliás,
numa sondagem de 2016, efetuada para o arranque do programa da SIC E se
fosse consigo, 16,4% dos inquiridos admitiram ser racistas e 11%
disseram "não saber" ou não responderam, sendo 26,1% os que confessaram
não apoiar um namoro do filho ou filha com alguém negro. E se 72,9% se
afirmaram não racistas, 43,7% acham que os portugueses o são. Uma
sondagem vale o que vale, claro - mas nos resultados do eurobarómetro de
2015 sobre discriminação as respostas dos portugueses, se dão a ver
progressos no que respeita à aceitação de alguns grupos discriminados
(nomeadamente LGBTQI), não se distinguem pela positiva face, por
exemplo, às dos franceses.
Se os
portugueses não forem menos xenófobos e racistas que os franceses,
porque será então que isso não tem, em Portugal, correspondência no
espetro político e nas intenções de voto? Talvez porque, ao contrário do
que sucede noutros países que tiveram colónias, como França e Reino
Unido, os grupos étnicos delas provenientes são praticamente invisíveis;
não competem, não disputam lugares nem empregos "desejados", não surgem
como "uma ameaça" para os "portugueses puros" (para usar a horrível
expressão de Le Pen), não exigem igualdade. Basta ligar a TV ou olhar
para o Parlamento, passear no centro das principais cidades, frequentar
restaurantes, bares, lojas - ou, o que é ainda mais aterrador, as
escolas depois do secundário. Onde estão os negros portugueses? Em
bolsas urbanas - os "bairros deles" - e de trabalho desconsiderado
(obras, limpeza, etc.), nas "discotecas deles", nos "restaurantes
deles". Não estão, decerto, nas redações dos jornais, das rádios, das
TV. E, salvo raras exceções, estão calados. Não reivindicam, não se
manifestam. Se Le Pen fosse portuguesa, podia dizer deles o que diz dos
luso-franceses: "Portam-se bem." Enquanto assim for, e continuar a haver
uma tão diminuta presença muçulmana em Portugal, podemos permanecer na
ilusão da nossa "excecionalidade". E da nossa brandura política - filha,
é claro, dos nossos brandos costumes.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
24/04/17
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