Ângulo de visão,
ou o que está em causa
no burkini
Não, o burkini não é um trapo anódino, mas sim um símbolo
que faz parte da panaceia salafista. E não, não estamos a falar de
medidas aleatórias tomadas em circunstâncias normais.
Denuncio aqui a postura moralista com que alguns portugueses nos
têm brindado. Aqueles que pouco se insurgem contra os justiceiros e as
guilhotinas para decapitar pirómanos e acham que o estado de urgência
deve incluir e aceitar, indiscutivelmente, a excepção, depois de
termos sofrido vários atentados no espaço de poucos meses. Vide
o significado do próprio estado de urgência: ele implica que,
estando o Estado de direito garantido, possam ser tomadas medidas que
garantam uma certa paz e coesão social.
O clima que por aqui se vive é crispado — e sublinho que vivo na
região de Cannes. Quanto ao burkini, recentemente proibido em três
locais, incluindo nesta cidade, ele é visto como um detalhe ou uma
novidade nas estâncias balneares. No entanto, traz consigo de forma
inegável uma carga simbólica.
São os próprios muçulmanos moderados que denunciam a
perniciosidade destas questões. Cito o exemplo dos jornalistas e
escritores — Kamel Daoud, Boualem Sansal, Mohamed Sifaoui, Aalam Wassef —
constantemente silenciados pelos bem-pensantes, sobretudo porque põem
em causa os fundamentos do comunitarismo. Claro que são vozes
discordantes, vivendo sob a ameaça permanente das fatwas que
lhes foram declaradas. Por isso mesmo, a voz tem de ser dada aos
muçulmanos moderados. Se defender a proliferação do comunitarismo, a sharia como
baliza penal intracomunitária e o relativismo cultural é defender os
direitos humanos, a sociedade ocidental adoeceu — e o plano da Arábia
Saudita está a resultar.
E porquê o comunitarismo? Porque o mesmo serviu de garante
eleitoral, porque ambas as partes assim o desejam e também porque aqui
está bem instalado, como uma gangrena, o salafismo, amplamente
promovido pelo wahhabismo da Arábia Saudita.
O salafismo não é uma prática religiosa, mas a construção de uma
identidade político-religiosa totalitária que se reflecte na sua
pretensão de representar os muçulmanos do mundo, a denominada Umma.
Quando menciono o papel do comunitarismo, falo na estratégia de
guetização que pretende impor através do tecido muçulmano francês
um alinhamento que se expressa através de clivagens e reivindicações.
Especificamente, a exigência de determinados alimentos, roupas — no
caso mencionado, o burkini –, comportamentos, escolas. Rejeitando todas
as outras práticas do Islão por um direito de excomunhão, a exclusão
acaba por ser o único destino dos takfir.
As próprias crianças recusam o Islão dos pais, nesta lógica de
doutrinamento, levando por vezes à ruptura. Os seus principais inimigos
são primeiro os outros muçulmanos, quer sejam oriundos de outras
escolas sunitas, quer sejam xiitas ou sufis, e depois os outros, ou
seja, nós. É toda uma lógica de exclusão deliberada e intencional.
Consequentemente, e por viver muito perto, digo “não, muito obrigada”,
inclusive aos contratos milionários celebrados entre o
primeiro-ministro Manuel Valls e a Arábia Saudita.
A manifesta falta de solidariedade que existe em algumas áreas da
sociedade portuguesa relativamente à política francesa sublinha o
desconhecimento da própria história, desde De Gaulle à recusa de
Dominique de Villepin em participar na cimeira dos Açores e consequente
guerra do Iraque, e põe a nu a sacrossanta ingenuidade de algumas
opiniões. Para não falar na inexistência de políticas de
integração no nosso país. Em França, país julgado pela “vozes da
razão” como extremista, a inclusão é um dado comum. Temos diariamente
pivots negros e de origem magrebina nos blocos noticiosos, duas
ministras magrebinas — Myriam El Komri e Najat Vallaud-Belkacem –, uma
ex-ministra da justiça, Christiane Taubira, negra, e a acrescentar a
isso temos ainda uma candidata à Presidência da República negra, Rama
Yade. Sem falar no peso que os moderados têm na sociedade.
Assim sendo, não, o burkini não é um trapo anódino — como o confirma o editor egípcio Aalam Wassef, no jornal Libération e na revista Marianne —,
mas sim um símbolo que faz parte da panaceia salafista. Não, não
estamos a falar de medidas aleatórias tomadas em circunstâncias
normais, mas sim da distância que altera em tudo o ângulo de visão.
*Escritora, foi candidata independente em 2014 pelo Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu
IN "OBSERVADOR"
22/08/16
Salafista - movimento salafista é um movimento ortodoxo ultraconservador dentro do islamismo sunita.
Sharia - é o nome que se dá ao direito islâmico. Em várias sociedades islâmicas, ao contrário do que ocorre na maioria das sociedades ocidentais,
não há separação entre a religião e o direito, todas as leis sendo
fundamentadas na religião e baseadas nas escrituras sagradas ou nas
opiniões de líderes religiosos.
Wahhabismo - é um movimento religioso ou seita do islamismo sunita geralmente descrito como "ortodoxo", "ultraconservador","extremista", "austero", "fundamentalista" e "puritano". O principal objetivo é restaurar o "culto monoteísta puro". Os adeptos muitas vezes opõem-se ao termo wahhabismo por considerá-lo pejorativo e preferem ser chamados de salafistas ou muwahhid.
Ummah, "nação", "comunidade") - é um termo que no islão se refere à comunidade constituída por todos os muçulmanos do mundo, unida pela crença em Alá, no profeta Maomé, nos profetas que o antecederam, nos anjos, na chegada do dia do Juízo Final e na predestinação divina. É irrelevante a raça, etnia, língua, género e posição social dos seus membros. Todo o muçulmano deve velar pelo bem-estar dos integrantes da Umma, sendo estes muçulmanos.
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