29/08/2016

SOFIA MARO

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Ângulo de visão, 
ou o que está em causa 
no burkini

Não, o burkini não é um trapo anódino, mas sim um símbolo que faz parte da panaceia salafista. E não, não estamos a falar de medidas aleatórias tomadas em circunstâncias normais.

Denuncio aqui a postura moralista com que alguns portugueses nos têm brindado. Aqueles que pouco se insurgem contra os justiceiros e as guilhotinas para decapitar pirómanos e acham que o estado de urgência deve incluir e aceitar, indiscutivelmente, a excepção, depois de termos sofrido vários atentados no espaço de poucos meses. Vide o significado do próprio estado de urgência: ele implica que, estando o Estado de direito garantido, possam ser tomadas medidas que garantam uma certa paz e coesão social.

O clima que por aqui se vive é crispado — e sublinho que vivo na região de Cannes. Quanto ao burkini, recentemente proibido em três locais, incluindo nesta cidade, ele é visto como um detalhe ou uma novidade nas estâncias balneares. No entanto, traz consigo de forma inegável uma carga simbólica.

São os próprios muçulmanos moderados que denunciam a perniciosidade destas questões. Cito o exemplo dos jornalistas e escritores — Kamel Daoud, Boualem Sansal, Mohamed Sifaoui, Aalam Wassef — constantemente silenciados pelos bem-pensantes, sobretudo porque põem em causa os fundamentos do comunitarismo. Claro que são vozes discordantes, vivendo sob a ameaça permanente das fatwas que lhes foram declaradas. Por isso mesmo, a voz tem de ser dada aos muçulmanos moderados. Se defender a proliferação do comunitarismo, a sharia como baliza penal intracomunitária e o relativismo cultural é defender os direitos humanos, a sociedade ocidental adoeceu — e o plano da Arábia Saudita está a resultar.

E porquê o comunitarismo? Porque o mesmo serviu de garante eleitoral, porque ambas as partes assim o desejam e também porque aqui está bem instalado, como uma gangrena, o salafismo, amplamente promovido pelo wahhabismo da Arábia Saudita.

O salafismo não é uma prática religiosa, mas a construção de uma identidade político-religiosa totalitária que se reflecte na sua pretensão de representar os muçulmanos do mundo, a denominada Umma.

Quando menciono o papel do comunitarismo, falo na estratégia de guetização que pretende impor através do tecido muçulmano francês um alinhamento que se expressa através de clivagens e reivindicações. Especificamente, a exigência de determinados alimentos, roupas — no caso mencionado, o burkini –, comportamentos, escolas. Rejeitando todas as outras práticas do Islão por um direito de excomunhão, a exclusão acaba por ser o único destino dos takfir.

As próprias crianças recusam o Islão dos pais, nesta lógica de doutrinamento, levando por vezes à ruptura. Os seus principais inimigos são primeiro os outros muçulmanos, quer sejam oriundos de outras escolas sunitas, quer sejam xiitas ou sufis, e depois os outros, ou seja, nós. É toda uma lógica de exclusão deliberada e intencional. Consequentemente, e por viver muito perto, digo “não, muito obrigada”, inclusive aos contratos milionários celebrados entre o primeiro-ministro Manuel Valls e a Arábia Saudita.

A manifesta falta de solidariedade que existe em algumas áreas da sociedade portuguesa relativamente à política francesa sublinha o desconhecimento da própria história, desde De Gaulle à recusa de Dominique de Villepin em participar na cimeira dos Açores e consequente guerra do Iraque, e põe a nu a sacrossanta ingenuidade de algumas opiniões. Para não falar na inexistência de políticas de integração no nosso país. Em França, país julgado pela “vozes da razão” como extremista, a inclusão é um dado comum. Temos diariamente pivots negros e de origem magrebina nos blocos noticiosos, duas ministras magrebinas — Myriam El Komri e Najat Vallaud-Belkacem –, uma ex-ministra da justiça, Christiane Taubira, negra, e a acrescentar a isso temos ainda uma candidata à Presidência da República negra, Rama Yade. Sem falar no peso que os moderados têm na sociedade.

Assim sendo, não, o burkini não é um trapo anódino — como o confirma o editor egípcio Aalam Wassef, no jornal Libération e na revista Marianne —, mas sim um símbolo que faz parte da panaceia salafista. Não, não estamos a falar de medidas aleatórias tomadas em circunstâncias normais, mas sim da distância que altera em tudo o ângulo de visão.

*Escritora, foi candidata independente em 2014 pelo Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu

IN "OBSERVADOR"
22/08/16

Salafista - movimento salafista é um movimento ortodoxo ultraconservador dentro do islamismo sunita.

Sharia - é o nome que se dá ao direito islâmico. Em várias sociedades islâmicas, ao contrário do que ocorre na maioria das sociedades ocidentais, não há separação entre a religião e o direito, todas as leis sendo fundamentadas na religião e baseadas nas escrituras sagradas ou nas opiniões de líderes religiosos.

Wahhabismo - é um movimento religioso ou seita do islamismo sunita geralmente descrito como "ortodoxo", "ultraconservador","extremista", "austero", "fundamentalista" e "puritano". O principal objetivo é restaurar o "culto monoteísta puro". Os adeptos muitas vezes opõem-se ao termo wahhabismo por considerá-lo pejorativo e preferem ser chamados de salafistas ou muwahhid.

Ummah, "nação", "comunidade") - é um termo que no islão se refere à comunidade constituída por todos os muçulmanos do mundo, unida pela crença em Alá, no profeta Maomé, nos profetas que o antecederam, nos anjos, na chegada do dia do Juízo Final e na predestinação divina. É irrelevante a raça, etnia, língua, género e posição social dos seus membros. Todo o muçulmano deve velar pelo bem-estar dos integrantes da Umma, sendo estes muçulmanos.

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