O que acrescentar?
Mais de vinte
anos depois da conversa, em que me perguntou se eu seria sua biógrafa,
é-me difícil fazer uma reflexão objetiva sobre a personalidade, o
mérito, o percurso da mulher notável que é Maria Barroso. Na sua
personalidade, vejo a liberdade como princípio de vida, a família como
força e estrutura de carácter, a política como disciplina de
comportamento, a fé como misteriosa e firme revelação em idade madura.
O que acrescentar que sobre ela não se saiba ou não tenha sido dito?
Mais
do que factos da vida pública, são agora desejados os detalhes sobre a
sua vida privada. Se discretamente atenuou a sua própria expressão, para
mais ser conhecida por primeira-dama e mulher de Mário Soares. Se foi
essa a sua vontade, em vez de se distinguir pela sua intervenção e ação
nas causas em que se tem envolvido, desde sempre. Perguntam-me como é a
organização dos seus dias. Se é uma mulher independente. Se determina os
rituais da casa e da família. Se tem uma relação próxima com os netos.
Se tem uma agenda própria. E mais e mais. Parecem ser mais importantes
estas minúcias do que o seu percurso de vida. O ambiente em que nasceu,
os estudos, os amigos, o teatro, o amor, a política.
Talvez sejam
menos conhecidos os seus concretos gestos de atenção aos outros, mais
ainda aos mais simples, aos anónimos cidadãos que chegam perto, a
dar-lhe uma palavra, a ouvir-lhe a voz. Poderão ser lembrados os seus
tons de feminilidade, a sua maneira clássica de vestir, a determinação
no estilo, a harmonia nas cores, a escolha do pequeno enfeite que sempre
usa, a combinar com as variadas circunstâncias em que está presente.
Na
sua expressão pública, Maria Barroso diz a importância da família, na
ordenação da sociedade. E na vida privada fala da casa dos pais, das
brincadeiras com os irmãos. Lembra cenários de juventude à roda da mesa
de jantar, repartidas então as fases difíceis de todos e de cada um.
Forte e claro é o discurso amoroso constante, sempre que fala do seu
amor. As prisões, os exílios, as separações, os medos. A coragem, o
atrevimento, são nela justos motivos de orgulho.
Não tem
temperamento para silêncio ou omissão, nas questões políticas e sociais
de atualidade ela afirma-se. Quando tem uma causa a defender, fala o
quanto pode, debate, imagina, propõe ideias, dá sugestões, defende
opiniões, abre hipóteses de solução. Sabe que os problemas que apresenta
pertencem, preocupam e dizem respeito a todos e a todas. Podendo ser
intolerante e até radical quando discorda, ela sente a compaixão,
pratica a solidariedade, a doçura. É reconhecido o seu estilo, o seu
jeito, a sua maneira de ser na fantástica capacidade de comunicação que
mantém com as instituições, os poderes, os cidadãos.
Na sua
postura, vejo a marca de formação que recebeu como atriz nos anos 1940
da sua juventude, quando no Teatro Nacional pertenceu à Companhia Amélia
Rey Colaço-Robles Monteiro, surpreendendo pelo talento que a poderia
ter consagrado como uma das notáveis da sua geração.
Aplaudida então
pelo público e pela crítica, para sempre lhe ficou a clareza na maneira
de falar, a certa medida das frases, a colocação de pausas e pontos
finais, o momento justo da respiração. As costas direitas, o olhar
determinado, a expressão dos olhos a confirmar o que diz e como diz.
Sem
desânimo nem pausas ou ausências, Maria Barroso tem tido perto de
duzentas intervenções públicas em média, por ano.
Umas largas dezenas de
idas e vindas entre Lisboa e as mais variadas geografias do país não a
cansam. Uma vintena de viagens anuais, acrescentando aos destinos
europeus as mais variadas rotas de longa distância estimulam-na. Para
que a solidariedade cresça no seu curso para a transformação dos males
deste mundo, faz conferências nas escolas secundárias e nas
universidades, promove debates e congressos, anima causas e ações.
A
violência na televisão e na imprensa, em especial, tem sido motivo de
textos e pronunciamentos. Assim como a família, a educação, a violência,
a assistência aos flagelados, às vítimas de seca ou de chuva, têm sido
suas razões de ser. Pela defesa dos direitos humanos e pela cooperação
inspira-se para campanhas a lançar, cresce em energias, tem
disponibilidade absoluta. Sempre que procura ajudas, apoios, parcerias,
raramente recebe recusas, porque a urgência de realizar é total e as
soluções possíveis existem.
Nestes dias sombrios, releio o que
Maria Barroso me disse e escrevi, no último capítulo da sua história: "O
meu reencontro com a fé deu-me uma serenidade muito grande para olhar
todo o percurso da minha vida, despedir-me deste mundo sem receio nem
angústia."
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
29/06/15
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