17/02/2015

ROSALVO ALMEIDA

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Hepatite C: 
para as pessoas lá 
em casa perceberem

Quem muito criticou este parecer errou o alvo e que quem muito o elogiou, como algumas autoridades, afinal não o seguiu.

No meio do muito que se tem dito sobre o caso da hepatite C há ainda outro tanto por dizer que as pessoas lá em casa querem perceber.

A hepatite não é como a apendicite. Esta é uma infeção bacteriana aguda que mata se não for imediatamente tratada. A outra é uma infeção vírica que está muitos anos sem sintomas antes de ser diagnosticada. Nas infeções bacterianas os antibióticos são baratos, mas, dadas as quantidades que se utilizam, custam também milhões de euros. Os antivíricos são muito caros e também é preciso que sejam utilizados com critério.

Os doentes não são todos iguais – alguns infetados pelo vírus da hepatite C demoram mais do que outros a ver o fígado claudicar (insuficiência hepática), endurecer (cirrose) e degenerar (cancro). Os vírus não são todos iguais – alguns têm genomas diferentes dos outros e, por isso, respondem de modo diferente aos tratamentos. Os novos tratamentos não atuam sobre a insuficiência hepática, a cirrose ou o cancro hepático. As pessoas lá em casa precisam de saber que a cura da infeção vírica não é o mesmo que a cura da doença hepática e que, por vezes, os tratamentos chegam tarde, sem que haja culpados desse atraso.

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (www.cnecv.pt) propôs, no seu Parecer n.º 64/2012, um modelo de decisão para o financiamento do custo dos medicamentos. As pessoas lá em casa precisam de perceber que o referido parecer apontava para a transparência como bem fundamental. Na verdade, se os recursos financeiros são limitados, importa que, antes das decisões, as pessoas lá em casa acreditem que há critérios justos. Ou seja, não é o médico sozinho perante um doente quem deve decidir se trata com A ou com B. Tem de haver regras definidas com antecedência, elaboradas por pessoas competentes, sem interesses comerciais, e que sejam aceites por pessoas de boa-fé.

O modelo do parecer do CNECV propunha que a fase clínica fosse assumida por "médicos, investigadores das ciências da vida e da saúde da área e comissões de farmácia e terapêutica em rede. [Onde] todos os envolvidos têm que fazer a respetiva declaração de conflito de interesses, de forma clara e com acesso público." Também, entre outras, havia a recomendação de que "em todos os protocolos ou normas de orientação clínica (…) o direito à exceção, devidamente fundamentada, deve estar contemplado (tal como a penalização da exceção não fundamentada)". Defendia-se a abordagem chamada “responsabilidade com razoabilidade” (“accountability for reasonableness” – para a multidão de leitores do PÚBLICO viciada em termos ingleses).

As pessoas lá em casa precisam de saber que quem muito criticou este parecer errou o alvo e que quem muito o elogiou, como algumas autoridades, afinal não o seguiu. Os critérios para admissão ao novo tratamento da hepatite C, que excluiu alguns doentes, foram fixados pelo Infarmed, mas, viu-se, foi criticado pelos médicos no terreno. As pessoas lá em casa precisam perceber quem são os autores dos critérios e quais as suas declarações de interesses e não os encontram no sítio eletrónico do Infarmed. Assim como era bom saber as declarações de interesse dos críticos. Se alguns recebem verbas da farmacêutica que comercializa o antivírus a título de consultoria – o que em si não é pecado – as pessoas lá em casa precisam de saber.

Os novos tratamentos e os que ainda hão de aparecer são muitíssimo caros, mas as pessoas lá em casa precisam de saber que os seus fabricantes podem ser travados na sua ganância… quando há ganância. Por exemplo, a legislação europeia prevê a declaração de invalidade da patente de um produto quando haja motivos de saúde pública e impasse nas negociações. Infelizmente não se criaram as condições para que o CNECV, apesar de instado oficialmente em dezembro, se pronunciasse sobre a sustentabilidade ética do acionar desse mecanismo. 
As pessoas lá em casa precisavam de perceber por que razão isso aconteceu, pois, embora o mandato deste órgão consultivo independente tenha terminado em julho passado, enquanto outro não tomar posse, deveria ter ocorrido uma convocatória extraordinária.

Declaração de interesses: o autor (rosalvo@netcabo.pt) foi neurologista e está aposentado, sem atividade clínica desde 2005; não tem qualquer relação com qualquer firma da indústria farmacêutica; é membro cessante do CNECV e foi correlator, com a professora Ana Sofia Carvalho, do Parecer n.º 64/2012.

IN "PÚBLICO"
16/02/15



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