Hepatite C:
para as pessoas lá
em casa perceberem
Quem muito criticou este parecer errou o alvo e que quem muito o elogiou, como algumas autoridades, afinal não o seguiu.
No meio do muito que se tem dito sobre o caso da hepatite C há ainda
outro tanto por dizer que as pessoas lá em casa querem perceber.
A hepatite não é como a apendicite. Esta é uma
infeção bacteriana aguda que mata se não for imediatamente tratada. A
outra é uma infeção vírica que está muitos anos sem sintomas antes de
ser diagnosticada. Nas infeções bacterianas os antibióticos são baratos,
mas, dadas as quantidades que se utilizam, custam também milhões de
euros. Os antivíricos são muito caros e também é preciso que sejam
utilizados com critério.
Os doentes não são todos iguais – alguns
infetados pelo vírus da hepatite C demoram mais do que outros a ver o
fígado claudicar (insuficiência hepática), endurecer (cirrose) e
degenerar (cancro). Os vírus não são todos iguais – alguns têm genomas
diferentes dos outros e, por isso, respondem de modo diferente aos
tratamentos. Os novos tratamentos não atuam sobre a insuficiência
hepática, a cirrose ou o cancro hepático. As pessoas lá em casa precisam
de saber que a cura da infeção vírica não é o mesmo que a cura da
doença hepática e que, por vezes, os tratamentos chegam tarde, sem que
haja culpados desse atraso.
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (www.cnecv.pt)
propôs, no seu Parecer n.º 64/2012, um modelo de decisão para o
financiamento do custo dos medicamentos. As pessoas lá em casa precisam
de perceber que o referido parecer apontava para a transparência como
bem fundamental. Na verdade, se os recursos financeiros são limitados,
importa que, antes das decisões, as pessoas lá em casa acreditem que há
critérios justos. Ou seja, não é o médico sozinho perante um doente quem
deve decidir se trata com A ou com B. Tem de haver regras definidas com
antecedência, elaboradas por pessoas competentes, sem interesses
comerciais, e que sejam aceites por pessoas de boa-fé.
O modelo do
parecer do CNECV propunha que a fase clínica fosse assumida por
"médicos, investigadores das ciências da vida e da saúde da área e
comissões de farmácia e terapêutica em rede. [Onde] todos os envolvidos
têm que fazer a respetiva declaração de conflito de interesses, de forma
clara e com acesso público." Também, entre outras, havia a recomendação
de que "em todos os protocolos ou normas de orientação clínica (…) o
direito à exceção, devidamente fundamentada, deve estar contemplado (tal
como a penalização da exceção não fundamentada)". Defendia-se a
abordagem chamada “responsabilidade com razoabilidade” (“accountability for reasonableness” – para a multidão de leitores do PÚBLICO viciada em termos ingleses).
As
pessoas lá em casa precisam de saber que quem muito criticou este
parecer errou o alvo e que quem muito o elogiou, como algumas
autoridades, afinal não o seguiu. Os critérios para admissão ao novo
tratamento da hepatite C, que excluiu alguns doentes, foram fixados pelo
Infarmed, mas, viu-se, foi criticado pelos médicos no terreno. As
pessoas lá em casa precisam perceber quem são os autores dos critérios e
quais as suas declarações de interesses e não os encontram no sítio
eletrónico do Infarmed. Assim como era bom saber as declarações de
interesse dos críticos. Se alguns recebem verbas da farmacêutica que
comercializa o antivírus a título de consultoria – o que em si não é
pecado – as pessoas lá em casa precisam de saber.
Os novos
tratamentos e os que ainda hão de aparecer são muitíssimo caros, mas as
pessoas lá em casa precisam de saber que os seus fabricantes podem ser
travados na sua ganância… quando há ganância. Por exemplo, a legislação
europeia prevê a declaração de invalidade da patente de um produto
quando haja motivos de saúde pública e impasse nas negociações.
Infelizmente não se criaram as condições para que o CNECV, apesar de
instado oficialmente em dezembro, se pronunciasse sobre a
sustentabilidade ética do acionar desse mecanismo.
As pessoas lá em casa
precisavam de perceber por que razão isso aconteceu, pois, embora o
mandato deste órgão consultivo independente tenha terminado em julho
passado, enquanto outro não tomar posse, deveria ter ocorrido uma
convocatória extraordinária.
Declaração de interesses: o autor (rosalvo@netcabo.pt)
foi neurologista e está aposentado, sem atividade clínica desde 2005;
não tem qualquer relação com qualquer firma da indústria farmacêutica; é
membro cessante do CNECV e foi correlator, com a professora Ana Sofia
Carvalho, do Parecer n.º 64/2012.
IN "PÚBLICO"
16/02/15
.
Sem comentários:
Enviar um comentário