Os Filipes em Sintra
Imaginem
que uma confederação internacional de sindicatos marcava para o dia das
eleições europeias uma sessão em Lisboa sobre o repúdio da austeridade
como caminho para a Europa.
Ou que uma plataforma de organizações não
governamentais convocava para essa tarde, no Porto, uma sessão de
solidariedade com as vítimas da catástrofe humanitária na Grécia. Ou
ainda que um conjunto de artistas organizava nesse domingo um concerto
de apoio à luta dos precários por um emprego com direitos e contra o
abuso dos recibos verdes.
Assim fosse e era ver os líderes,
sublíderes, aspirantes a líderes e jotinhas em bicos de pés, todos em
uníssono a bradar pelo cumprimento da lei eleitoral, exigindo a
proibição liminar de todos os atos públicos que interferissem direta ou
indiretamente na liberdade de escolha dos eleitores. Ora sucede que se
aqueles três cenários são óbvia fantasia, é a mais pura das verdades que
o Banco Central Europeu, o Fundo Monetário Internacional e a Comissão
Europeia entenderam organizar em Sintra, no dia das eleições, uma
jornada de propaganda da receita de austeridade. O displicente "que se
lixem as eleições" de Passos Coelho virou escárnio da democracia às mãos
da troika. Para eles, que se lixem as eleições, que se lixe a lei, que
se lixe a democracia, que se lixe o Estado português. Manda quem paga e
quem paga manda que se faça um te deum de louvor à austeridade no dia em
que ela está em juízo pelo povo.
A troika já tinha amarrado os
partidos do seu arco à jura de terem um mesmo programa de governo e a
envolverem-no numa camuflagem de discordância mínima. Depois, já os
tinha vinculado por décadas ao cumprimento de uma legalidade superior - a
do Tratado Orçamental. Verdadeiramente, a troika já tinha transformado o
seu arco partidário numa coligação de facto. Não precisava, por isso,
de aborrecer os seus líderes máximos com uma vinda à periferia para dar
gás ao cânone da austeridade. Ter marcado viagem e alojamento
a Draghi, a Lagarde e a Barroso para o dia em que o País, pelo voto,
vai ter a oportunidade de avaliar pela primeira vez o verdadeiro
programa de governo da grande convergência que é o arco do Tratado
Orçamental já não pertence ao domínio da tática política de momento.
Não, é outra coisa. É uma estratégia de humilhação do dominado pelo
dominador. A mensagem da jornada de Sintra para o povo português é
clara: "Pensas que escolhes?
Pois desengana-te. Não há cá escolhas nem
fantasias democráticas. Tu és devedor e devedor hás de permanecer. E,
por isso, essa coisa da democracia não se te aplica. Porque a tua única
escolha é entre austeridade de manhã e à tarde ou austeridade de tarde e
de manhã. Habitua-te."
O 1640 de que fala vibrantemente Paulo
Portas é isto: os Filipes vêm a Sintra festejar a ocupação libertadora
de Portugal. O grande alívio nacional com a saída da troika é a
substituição dos mangas de alpaca que vêm de Bruxelas, Frankfurt e Nova
Iorque para conferir as folhas de excel no Terreiro do Paço pelos barões
que realmente decidem o nosso destino.
Passos Coelho e Paulo Portas
estremecem de emoção com o "fim do protetorado". Pois bem, Portugal é
hoje um território não autónomo sob mandato da troika.
O que ela nos vem
dizer, em Sintra, no domingo em que votamos, são duas coisas muito
importantes: a primeira é que milhões dos nossos votos não valem nada, o
que vale é a carta de intenções que o Governo enviou ao FMI para poder
anunciar uma saída limpa; a segunda é que o que está errado na expressão
"saída limpa" não é o adjetivo "limpa", é o substantivo "saída".
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
09/05/14
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