"Cores vivas da vida"
Maior do que alegria, experimento o que intuo ser o espanto feliz de ser tocada por "outra vida", que revivo, como se renascida.
O futuro acontece
Antes era o silêncio. Antes era o espaço. Entretanto começou outro ano,
um novo tempo. Perto da janela ampla, a toda a largura da varanda,
esteve um cavalete nu, com marcas ao acaso de cores antigas. No recanto
de uma pequena mesa, uma paleta (ainda) branca, cores (quase) a
espreitar, um copo alto, transparente, com pincéis pousados à espera de
uma mão.
Um dia - sem medida no calendário - surge uma tela semelhante a uma
folha de papel em branco, a uma outra escala: um esboço a lápis, um
rosto (ainda) impreciso e indeciso que parecia perguntar se haveria de
ter cor, corpo. O seu olhar interrogava-me como reflexo de um rosto
inacabado: senti o futuro a começar a acontecer.
À luz primeira de tantas manhãs, o mesmo silêncio, o mesmo espaço. Em
murmúrio, o tempo muda: "no decurso da obra, as cores vivas da vida
ensombreiam-se, dançam e libertam-se da visão. Uma grande comoção
deflagra" ("Being Beauteous", Rimbaud). As mãos moveram-se, silenciosas,
livres, como se respondessem ao olhar que antes se tinha esboçado.
Haveria de ser cor, corpo. Ocres, as cores: amarelas, avermelhadas,
acastanhadas. Luz, calor, combustão. Nascimento e ocaso, a vida a cores,
vivas.
A memória (emudecida) conduziu a mão (ágil) que deu vida a tão intensas
figuras: olhares que confiam, uns; outros ausentes, sem se tocarem;
corpos deitados, ao abandono, ou próximos, íntimos, lado a lado. Moram
dentro de enquadramentos (por dentro das telas) que são lugares que
podemos habitar, a que sabemos pertencer, ser. "O que será?", "o que
seremos?", perguntam-nos estas mulheres. Parecem dialogar ou
silenciar-se (entre si, connosco?).
Em cada tela (agora) não mais o eco, (agora) não mais o vazio: "algo
apaziguador deve aproximar-se de mim vindo de longe e sou forçado a
sorrir e a admirar-me por experimentar alegria no meio de tão grande
sofrimento" ("Elegias", Hölderlin).
Por cada recanto e parede onde agora se dão ao olhar (na exposição
intitulada "Angels" a ver no renovado Funchal Ateneu Café até dia 30 de
Dezembro), estas mulheres transportam - sombras iluminadas - o percurso
de uma vida, do passado, de toda a memória, do que se não diz: "e assim o
tempo rodopia em mudança e luta e aos amantes uma outra vida é
concedida" ("Elegias", Hölderlin).
Não sei palavras que digam o que senti ao consentir demorar-me e ser
habitada por esta belíssima e rara série de quadros de Teresa Brazão.
Talvez a minha melhor forma de o compreender seja declarar,
silenciosamente, que aconteceu em mim um "diálogo confiante, num
uníssono canto interior, num âmbito de paz. Um sopro sagrado que
percorre divinamente a figura de luz" ("Elegias", Hölderlin). As figuras
de luz nascidas pela mão e pelo olhar de Teresa.
Passou muito tempo. Passará outro tanto tempo, maior. Não sei senão
perguntar "porque demorei tanto, tanto tempo a procurar-te por pálidos
caminhos terrestres, habituado a ti, errante, Anjo da alegria"
("Elegias", Hölderlin).
Sorrio, em tão certo "uníssono canto interior" (aprendido com Teresa
Brazão), ante as "cores vivas da vida" que tão intensamente tocam quem
com o olhar e os sentidos as toca. Maior do que alegria, experimento o
que intuo ser o espanto feliz de ser tocada por "outra vida", que
revivo, como se renascida. O futuro acontece.
Professora universitária
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
02/12/12
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