23/04/2024

INÊS FERREIRA LEITE

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Reflexões sobre um
genocídio em curso

Quando fui designada como representante de Portugal na ECRI (European Comission against Racism and Intolerance), uma comissão do Conselho da Europa, Nuno Melo – então deputado do Parlamento Europeu – escreveu um artigo acusando-me de utilizar as minhas funções para denegrir Pedro Passos Coelho, num relatório sobre Portugal aprovado pela ECRI. Esqueceu-se o Sr. deputado de mencionar que tal acusação era impossível. O relatório em causa – que, efetivamente, à data, acusava injustamente o ex-Primeiro-Ministro de xenofobia e racismo – havia sido aprovado a 19 de junho de 2018 (aqui) e a minha nomeação ocorreu apenas em setembro de 2018, tendo iniciado funções em dezembro de 2018. Na minha ingenuidade, pensando tratar-se de mera ignorância, telefonei ao Sr. deputado para esclarecer e corrigir o artigo. Após cerca de 1 hora de explicações – o relatório tinha-me sido entregue antes da publicação, sob sigilo, para verificação da tradução e, tendo detetado a injustiça contra Pedro Passos Coelho, tinha escrito à ECRI a pedir a correção, mas foi-me dito que, tendo o relatório sido já aprovado em plenário, tal não seria possível, e só poderiam ser feitas correções de gralhas ou de erros de tradução – o Sr. deputado recusou-se também a fazer qualquer correção ao seu artigo. A razão oferecida? Que eu não tinha perfil para representar Portugal na ECRI, por ser feminista.

Em 2019, fui eleita Vice-Presidente de um Grupo de Trabalho dedicado à revisão da Recomendação da ECRI n.º 5 sobre o combate ao racismo anti-islâmico e discriminação, grupo de trabalho presidido por Domenica Ghidei Biidu, representante da Holanda. No âmbito dos nossos trabalhos pude falar com muitos representantes de ONGs, academic@s e titulares de cargos públicos, homens e mulheres, bem como aperceber-me dos ónus injustos que muitos muçulmanos suportam na maioria dos países europeus: proibição do uso da hijabe, proibição de associação e/ou manifestação, discriminação na escola e local de trabalho, etc. Dos estudos que fiz, na altura, pude desconstruir grande parte das crenças que tinha sobre muçulmanos, muito motivadas pela forma como são descritos nos manuais escolares portugueses, mas, também, por quase 20 anos de intensa propaganda anti-islâmica vinda dos Estados Unidos e aliados. O nosso trabalho foi entregue em dezembro de 2021 (aqui), mas a minha educação histórica, política e social sobre o Islão tinha apenas começado. Nos anos seguintes, visitei vários países de tradição islâmica, podendo confirmar o que tinha intuído: as versões caricaturadas dos muçulmanos que circulam na Europa têm muito pouco a ver com a realidade.

Em setembro de 2023, pude finalmente visitar Israel e os territórios ocupados na Cisjordânia (ir a Gaza era impossível). Passei 4 dias no norte de Israel, em Tel Aviv, Jerusalém e Belém, e mais uns dias no sul de Israel, e acabei por atravessar a pé a fronteira com o Egito, em Taba, experiência que foi igualmente educacional. Como sabem, poucos dias após regressar a Portugal, ocorreu o ataque terrorista do Hamas em Israel, a 7/10, e logo a seguir iniciou-se uma campanha militar que tem hoje todas as características teóricas e práticas do conceito legal e histórico de genocídio. Conhecendo a história de Israel, tendo lá estado (passei algumas horas a conversar com polícias e alguns ex-militares do IDF – não é difícil, porque o serviço militar é obrigatório –, achando estes que eu seria uma apoiante incondicional do seu trabalho, engano imprescindível para que falassem candidamente), tendo visitado Jerusalém e entrado em Belém, logo que soube do ataque de 7/10, temi o pior.

Parece hoje bastante claro que o governo de Israel encontrou neste ataque o pretexto e o momento ideal para finalizar a limpeza étnica dos Palestinianos em Gaza (neste momento, estão encurralados em Rafa e irão morrer ou serão exilados para o deserto, no Egito), à qual se seguirá, sem dúvida, a limpeza étnica dos territórios ocupados. Nada disto é assim tão espantoso, afinal, vários membros de sucessivos governos de Israel têm vindo a admitir que a sua ambição é essa (aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui) e alguns extremistas querem também parte do Líbano, da Jordânia e do Egito (pelo menos, há quem inclua o Iraque e outros países). E sim, também há terroristas – oficialmente condenados – no governo de Israel.

Quase 35.000 pessoas confirmadas mortas (mais de 13.000 crianças, muitas com menos de 1 ano), com centenas desaparecidas debaixo das casas onde viviam, destruição de Universidades, mesquitas, igrejas, hospitais, etc., e ainda há quem tenha dúvidas sobre se terá havido violação do Direito Internacional. Obviamente, estamos de coração partido com os horrores que temos visto, mas…. Não estamos todos? Não.

Desde pequena que estudo o Holocausto (como tantos portugueses, a minha família tem ascendência judaica, o meu avô lia hebraico e o tema foi sempre muito falado e analisado em casa) e, claro, confronto-me com a pergunta chave: como foi possível isto acontecer, aqui no centro da Europa, e ninguém fez nada? Pois temos agora, finalmente, a resposta.

Foi possível, e está a ser possível. Não tenham dúvidas, o que quer que estejam a fazer agora, é o que estariam a fazer em 1938, após a kristallnacht ter deixado bem claro o objetivo dos nazis. Defendem o direito de Israel a exterminar ou expulsar os Palestinianos? Teriam, então, defendido o direito dos nazis de defenderem a Alemanha da ameaça comunista (sim, a perseguição aos judeus começa com uma associação rígida entre estes e o comunismo, aliás, Portugal chegou a deportar um judeu alemão refugiado, em 1933, sob acusação de “agitador comunista”, falsa, dada a influência da Delegação da Alemanha nazi em Lisboa1). Acreditam em tudo o que as fontes Israelitas dizem e duvidam das notícias que vêm de Gaza? Teriam então acreditado nos relatórios nazis, e colocado em causa os poucos ativistas que tentavam trazer informações da Alemanha e países ocupados. Continuam a viver a vossa vida como antes, totalmente alheados disto? Teriam assim vivido tranquilamente enquanto milhares eram exterminados em ghettos e campos de concentração.

Nada de novo. O que há de novo, desde então, é o Direito Internacional, em especial a Convenção Para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 09/12/1948, aprovada por Resolução da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, e a Convenção IV, Convenção de Genebra Relativa à Proteção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra, de 12/08/1949. Estas convenções não se limitam a estabelecer os critérios de proteção de civis e as condições da punição do genocídio. Impõem aos Estados-membros o dever de respeitar e de fazer respeitar as suas regras. Pelo que todos os países signatários, incluindo Portugal, têm o dever de não promover, ou de qualquer modo auxiliar a comissão do crime de genocídio por Israel. Estamos a cumprir as convenções? Tenho muitas dúvidas, a história o decidirá. O que sei é que a Europa, enquanto entidade coletiva, bem como vários países europeus, não só não estão a impedir, como estão ativamente a auxiliar, desde a venda de armas e produtos associados, à retirada de fundos humanitários, à celebração de acordos para exploração futura do espólio de Gaza, à perseguição contra aqueles que protestam ou tomam posição pela humanidade. E o fascismo regressou, de mansinho, à Alemanha.

Não é assim tão espantoso que a Alemanha ou o Reino Unidos estejam, de novo, a contribuir para um genocídio, mas a Holanda, a Suécia, Itália, etc., o que os motivará? O amor aos judeus não é, nunca tiveram grande amor aos judeus, pelo contrário. O mesmo se diga historicamente dos Estados Unidos, que passaram anos a fingir que não sabiam o que se passava na Alemanha e a recusar refugiados judeus (que também acusavam de serem comunistas).

O que será? O que será? O que será?

A Palestina vai ser apagada do mapa, literalmente, e o mundo ficará parado a ver. Mas se isso acontecer, não são só os palestinianos que morrem. Morre, também, a ilusão do Direito Internacional. Vamos todos descobrir finalmente que o Direito Internacional mais não é do que uma ferramenta conveniente para que alguns países dominantes de tradição ocidental possam eliminar políticos inconvenientes, invadir territórios, fazer circular bens e capital, e continuarem a fingir que são os bons da fita. Não são. Nunca foram.

Pela minha parte, estou a fazer e farei tudo o que estiver ao meu alcance, não para impedir, já não é possível impedir o genocídio, mas para informar, garantir que a realidade não é enterrada nos escombros provocados pela propaganda israelita, e que os responsáveis, dentro e fora de Israel, sejam julgados. Por isso, e perante uma ECRI apática e inconsciente da gravidade da situação, apresentei a demissão em dezembro de 2023. Tenho de dar razão a Nuno Melo: não tenho perfil para estar numa Comissão do Conselho da Europa. Estas comissões precisam de pessoas que gostam muito de viajar e socializar, mas de resto só se preocupam mesmo com os seus próprios interesses. Eu só gosto de viajar, nem tanto de socializar e tenho poucos interesses.

Afinal, o Sr. deputado tinha razão, nada acontece por acaso.

* Professora de Direito Penal e representante de Portugal na ECRI 2018-2023

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS" - 22/04/24

NR/1: Tal filha, tal mãe!

NR/2: O Lázaro do Largo do Caldas que aprenda com quem sabe!.

2 comentários:

Anónimo disse...

Um artigo fundamental.

Tété disse...

Saem bem uma à outra.
E a filha tem toda uma razão para falar do que sabe, porque tem vivido mergulhada na realidade teórica e efetiva de todo o problema.
As pessoas por norma não são boas e gostam para si do que não querem para os outros.
O cinismo impera e prolifera na política como os piolhos em cabelos mal lavados .