04/08/2019

TÂNIA LUÍSA FARIA

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Relatórios minoritários

A intervenção do Direito da Concorrência não pode, subitamente, passar a incluir funções reservadas ao Direito do Consumidor, às disposições de promoção do mercado interno, de proteção de dados e de neutralidade das plataformas digitais.

Washington D.C., 2054. Um ainda consensual Tom Cruise combate “precrimes“, utilizando poderes de “pre-cog“. Minority Report (“Relatório Minoritário”), não obstante os seus méritos cinematográficos duvidosos no contexto da obra spielbergiana, sinaliza o perigo da “presciência” de comportamentos antijurídicos, em que o custo da eliminação total de condutas proibidas é a supressão de atividade, não só lícita, como legítima e desejável.
Fomos subitamente remetidos para esta obra do início do século XXI pela sucessiva publicação de relatórios, pelas autoridades da concorrência, no que concerne a aplicação do Direito da Concorrência a mercados digitais.
De entre estes, cumpre realçar o Relatório Furman, de março de 2019, que dirigiu um conjunto de recomendações à Competition and Markets Authority, do Reino Unido, que parece preconizar uma espécie de institucionalização de poderes pre-cog, em que o protagonismo do telegénico Cruise seria ocupado pelos economistas, tendo em conta a escassa menção ao enquadramento jurídico aplicável neste contexto.
Há, por exemplo, a sugestão de um novo padrão de apreciação de killer acquisitions – aquisições de uma empresa-alvo inovadora por um incumbente no mundo digital. De acordo com este critério, não caberia à autoridade da concorrência demonstrar a existência de um impedimento significativo da concorrência em resultado da aquisição, mas empreender um “balance of harms” quanto ao impacto da transação, que colocaria na esfera das partes a demonstração do “unicórnio” do Direito da Concorrência: a existência de eficiências económicas. Há ainda, no mesmo sentido, a proposta de alargamento da adoção de medidas cautelares em investigações relacionadas com mercados digitais.
Também a Autoridade da Concorrência portuguesa emitiu, no início de julho, um “issues paper” em que, uma vez mais, parece prevalecer uma perspetiva económica algo abstrata, tal como já tinha sucedido no relatório relativo às Fintech, publicado no ano passado. Apesar de se alargar em considerações relativas a “operações de concentração agressivas” e a alegados efeitos de exclusão do acesso a big data, a Autoridade basta-se com uma espécie de alerta geral, pre-cog em sentido amplo, abstendo-se de conclusões concretas.
Em face do supra exposto importa, em nosso entender, recomentar cautela. Desde logo, a exigência jurídica de não discriminação determina que não se cavem trincheiras injustificadas entre o mundo digital e o mundo físico.
Ademais, a intervenção do Direito da Concorrência não pode, subitamente, passar a incluir funções reservadas ao Direito do Consumidor, às disposições de promoção do mercado interno, de proteção de dados e de neutralidade das plataformas digitais, cuja existência e aplicabilidade devem ser, prima facie, asseguradas.
Por fim, é desaconselhável, do ponto de vista do respeito pelos direitos das pessoas e das empresas, uma precipitação no sentido da antecipação da tutela, que arrisca remeter-nos, afinal, para indesejados cenários de ficção científica.

IN "O JORNAL ECONÓMICO"
26/07/19

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