.
O silêncio de Marcelo
Ao
contrário do que se diz, a idade traz memória. Pertenço a uma geração
que, há umas boas décadas, lia, por vício recorrente, as crónicas de
análise política que Marcelo Rebelo de Sousa escrevia na página dois do
"Expresso". E, mesmo sem precisão factual, recordo-me de um desses
textos em que o analista especulava em torno do "estranho" silêncio de
Eanes, então presidente da República, em face de determinada conjuntura.
O agora presidente elaborava sobre as razões que motivavam aquele que
viria a ser seu antecessor a não se pronunciar, como se entendia
expectável, nesse quadro de crise.
Lembrei-me
disto agora, num tempo em que Marcelo Rebelo de Sousa, cuja propensão
para o pronunciamento público costuma, às vezes, raiar o excesso, bem em
contraste com o que era a consabida reserva de Eanes, se mantém, pelo
menos até à hora em que escrevo, num "sonoro" silêncio, naquela que foi a
circunstância que, de modo potencial, se configurou como a maior crise
para a estabilidade governativa, em toda a corrente legislatura.
O
presidente fez bem em guardar a sua palavra. O que quer que pudesse ter
dito teria sido demasiado. António Costa mediu a sua atitude, ao
ameaçar com uma demissão, caso a direita se deixasse arrastar num
processo de irresponsabilidade financeira. (É muito curioso que os
portugueses, e o próprio António Costa, aceitem, sem surpresa nem
escândalo, uma idêntica atitude por parte da "esquerda da esquerda",
como se estivéssemos perante crianças traquinas "que já se sabe como
são..."). Ao deixar o PSD e o CDS tropeçarem em si mesmos, Costa poupou a
Marcelo o custo político de um veto - que, faço justiça ao presidente,
ele seguramente colocaria à legislação, se aprovada nos escandalosos
termos acordados em comissão parlamentar.
Tenho
para mim que o presidente e o primeiro-ministro se fizeram um favor
mútuo. António Costa ocupou o centro da praça, nela ficando
deliberadamente sozinho, assistindo (com evidente deleite) ao esbracejar
verbal dos seus opositores, que nem sequer foram compreendidos pela
esmagadora maioria dos comentadores das respetivas áreas políticas -
porque estes sabem que o ridículo se paga em credibilidade. Marcelo
Rebelo de Sousa, refreando o seu tropismo para a palavra instantânea,
percebeu que tudo quanto pudesse dizer, mesmo em termos de "acalmação",
teria um preço em desagrado por parte de alguém. Deixará assim que a
poeira assente para depois nos brindar com algumas palavras vistas como
sensatas. Como sensato foi este seu silêncio.
* EMBAIXADOR
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
08/05/19
.
Sem comentários:
Enviar um comentário