08/03/2019

PEDRO FERROS

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Crónica sobre os dias 
da esquizofrenia justiceira 
e a reafirmação do direito

É, por isso, muito curioso fazer uma análise à indignação que os acórdãos de Neto de Moura vêm desencadeando junto destes antigos profetas da liberdade

De repente, o universo mediático e não só, à semelhança do fenómeno do futebol, encheu-se de especialistas em direito e em direitos, e assistimos com perplexidade ao julgamento público dos julgadores profissionais à luz das disposições dos códigos do populismo e da agenda política.

Para nosso grande azar, a justiça está na berra, e em vez de outras prementes questões que muito mais que os acórdãos do dr. Neto de Moura poderiam e deveriam mobilizar e catalisar a opinião pública, ficámos desgraçadamente na análise daquilo que uns quantos acham que estes acórdãos dizem e do que deviam antes dizer.

Sobre o que é mesmo relevante discutir na justiça, vamos esperar não ter de relembrar em breve os gloriosos tempos dos “distraídos” conselheiros Noronha do Nascimento e Pinto Monteiro, enquanto dissecamos sumariamente mais um acórdão que não compreendemos, por causa de uma acusação qualquer de que não cumpre com os hodiernos tempos da agenda mediática e das causas fracturantes.

Esses temas, porém, não têm o mediatismo conseguido pela análise apócrifa, e não técnica, que todos de repente se permitem sobre os acórdãos deste acossado sr. desembargador. A verdade, porém, é que, regra geral e além da propagação muitíssimo amplificada de uma retórica dissonante das ideias mainstream sobre a violência doméstica e de uma personificação muitíssimo fulanizada no julgador, e nada nos agressores, toda esta sublevação está inquinada pela falta de profundidade da análise e pela ignorância profunda quer do conteúdo da decisão quer da seu acerto técnico.

É evidente que Neto de Moura não tem empatia e que as suas decisões parecem, prima facie, ferir esta tal verdade (absoluta e contaminante) construída da simples leitura de um acórdão.

Quase todos sem excepção, e muitos a quem se pedia muito mais, decidiram julgar Neto de Moura por causa daquilo que alguém diz ter lido, e menos sobre que o acórdão relatado por Neto de Moura foi tirado por unanimidade, o que indiciará, não que todos os juízes são pela violência doméstica, mas sim que estarão de acordo com a fundamentação técnica do mesmo, e mais, poucos até agora, na ânsia justiceira de comentadores das caixas de ódio, conseguiram atentar em que, no essencial, esta sentença confirma uma decisão de primeira instância que diz o seguinte:
“Face ao exposto, o Tribunal (de primeira instância) decide:
a) Condenar o arguido B… pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152.o, n.o 1 alíneas a) e c) e n.o 2 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
No entanto, por considerar que as exigências de prevenção ficam devidamente salvaguardadas, decide-se suspender a pena de prisão aplicada, condenando-se assim o arguido B… na pena de 3 (três) anos de prisão, prisão suspensa na execução pelo período de 3 (três) anos, suspensão sujeita a regime de prova, obrigando-se o arguido ao cumprimento do plano de reinserção social (…).
Do plano de reinserção social deverá constar o tratamento ao alcoolismo, se tal for considerado necessário, e ainda o cumprimento das penas acessórias.
b) Condenar o arguido B… na pena acessória de proibição de contactos com C… (proibição de contactos telefónicos, presenciais, por redes sociais ou epistolares), com a imposição do afastamento do arguido do local de trabalho/residência da vítima C…, pelo período de 3 (três) anos, e com recurso a meios de vigilância eletrónica.
c) Condenar o arguido B… na pena acessória de obrigação de frequência no Programa de Prevenção de Agressores de Violência Doméstica, em sessões a definir pela DGRSP de acordo com as necessidades do condenado, programa a frequentar no prazo de 1 (um) ano;
d) Por se considerar o pedido de indemnização civil procedente, por provado, condena-se o demandado B… a pagar à demandante C…, pelos danos não patrimoniais, a quantia de €2500,00 (dois mil e quinhentos euros)”.

Será que sabem que nem o Ministério Público nem a lesada recorreram dessa sentença? E que na extensa fundamentação do acórdão pode ler-se que “ O grau de ilicitude da conduta do arguido não pode ser menosprezado, tendo em consideração a natureza do bem jurídico violado. § Presentemente, é consensual a ideia de que a utilização da violência, nomeadamente contra as mulheres, as crianças e os idosos, constitui uma violação dos direitos fundamentais da pessoa humana”? Ou que, no fundo, este acórdão mantém a condenação com pena suspensa que fora decidida em primeira instância, retirando-lhe dois meses na sua duração por uma questão de ponderação técnica da dosimetria, e que as demais alterações se reportam a nulidades processuais e insuficiências da decisão recorrida, ou seja, que mais não foram que a reposição da legalidade?

Esta decisão, assim, não revogou ou decidiu a libertação do agressor, que nunca esteve preso, e o que se decidiu reformar no acórdão não teria de ter sido feito se a sentença recorrida estivesse em condições, e decidiu pois:
“(…) b) manter a condenação do arguido B… pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica previsto e punível pelo artigo 152.o, n.os 1, alíneas a) e c), e 2, do Código Penal, mas alterar a medida da pena, que agora se fixa em 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período;
c) manter a condenação do arguido na pena acessória de proibição de contactos com C…, mas reduzir a sua duração para um ano;
d) revogar a decisão de utilização de meios técnicos de controlo à distância na fiscalização do cumprimento dessa pena acessória;
e) em tudo o mais, designadamente no que tange ao regime de prova e imposição de deveres e regras de conduta que condicionam a suspensão da execução da pena e quanto à pena acessória de obrigação de frequência de programa de prevenção de agressores de violência doméstica, manter o decidido”.

O acórdão explica as opções e identifica os vícios, e a verdade é que, pese o coro mediático, até para as vozes histriónicas que se levantaram deverá ser consensual que, comparadas com as muitas mulheres que morrem vítimas da violência doméstica, sempre amiúde lembradas por estes, por trágico e amoral que seja furar um tímpano a soco, que é!. (no confronto), tal será relativamente menos grave que matar alguém à pancada. A lei reconhece-o e o julgador tem de fazê-lo também, quando aplica o direito.

É muito curioso, pois, que pessoas que normalmente se afirmam paladinos da defesa do direito a inúmeras liberdades, constitucionais e não só, e que exigem de todos e relativamente a si o respeito escrupuloso de cada um dos seus direitos e garantias, ou porventura também para todas as suas minorias favoritas, recusem (numa matéria que claramente desconhecem ou relativamente à qual estão de má-fé) que tais garantias possam de alguma forma, e afinal, ser suprimidas a alguém sempre que a decisão não for conforme com os cânones das suas certezas politicamente correctas e ideologicamente puras.

É, por isso, muito curioso fazer uma análise à indignação que os acórdãos de Neto de Moura vêm desencadeando junto destes antigos profetas da liberdade. Os mesmos que rasgavam as vestes com o exercício da autoridade do Estado no Bairro da Jamaica são os que encabeçam agora o movimento contra o Estado quando este é garantista e os reafirma, afrouxando as restrições decretadas aos direitos dos arguidos que são, de acordo com as agendas em voga, “impopulares”.

O exercício da função de julgar sopesa os direitos dos agressores e dos agredidos, e o seu exercício correcto pode e, muitas vezes, determinará mesmo casuisticamente resultados socialmente impopulares e aparentemente cruéis e/ou completamente dissonantes da agenda mediática, mas, não obstante, perfeitamente legais porque repositores da legalidade e a espaços delimitadores e repressores de um certo populismo justiceiro e totalitário das causas mais ou menos apaixonadas.

Por isso, por maior paradoxo que pareça ser, é nos acórdãos polémicos e impopulares que, de tempos a tempos, se reafirmam direitos que a barbárie já revogou no seu ímpeto justiceiro, e que há espaço para se reafirmar o direito, e os direitos, mesmo que tal pareça aberrante no calor do momento.

Advogado na norma8advogados

IN "i"
07/03/19

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