Elogio dos dicionários
e outras coisas assim
Ainda tenho uma prateleira com
dicionários, de português e de línguas várias, incluindo latim, restos
dos tempos do liceu. Podia ter aproveitado para descartá-los na última
mudança de casa mas faltou-me a coragem. E ainda bem, porque há poucos
dias precisei de entender a origem de uma palavra e foi ali que
encontrei.
A alternativa óbvia era
fazer uma pesquisa na internet, até porque estava sentada a escrever no
computador. Feita a operação: levantar-me, ir direta à estante, escolher
o calhamaço, folhear até encontrar o que procurava - acho,
sinceramente, que fiquei a ganhar em informação e até (podem não
acreditar) em tempo. Não me recordo de qual era a palavra nem isso é
agora relevante. O que me interessa é que fiquei a saber mais, não só
sobre a pergunta que tinha mas, por acréscimo ou bónus, sobre as
palavras que encontrei, acima ou abaixo da outra, da mesma família ou
graças à ordem alfabética.
Dias depois,
por coincidência (eu sou adepta das coincidências, acho que existem e
gosto muito de dar por elas), deparei com um texto de Alberto Manguel
sobre este mesmo tema. No livro Embalando a Minha Biblioteca,
da Tinta da China, este escritor, professor e sobretudo grande leitor
faz o elogio do dicionário com uma argumentação e um historial
maravilhosamente documentados e estruturados. Ele coloca até a questão,
em que eu seguramente nunca tinha pensado, dos dicionários das línguas
não alfabéticas, como o japonês ou o chinês. Como organizar um
dicionário sem começar no A e terminar no Z? Está lá tudo muito bem
explicado, e cito apenas isto: "Os chineses desenvolveram três sistemas
lexicográficos: por categorias semânticas, por componentes gráficos e
por pronúncia."
Embalando a Minha
Biblioteca parte de uma situação sobre a qual Manguel não se alarga em
explicações. Estava instalado, pensava ele que para toda a vida, num
presbitério perto do Loire onde tinha conseguido arrumar os seus 35 mil
livros. Os critérios de organização de uma biblioteca pessoal têm muito
que se lhes diga e cada pessoa tem o seu. O dele era muito particular e
não era realmente estável: "Muitas vezes senti que a minha biblioteca
explicava quem eu era, me conferia um eu sempre em mudança, que se
transformava constantemente ao longo dos anos."
Sucedeu
que ao fim de 15 anos no celeiro do presbitério francês o escritor se
viu forçado a mudar tudo de novo. E aí entra o título do livro, uma
brincadeira à volta de um ensaio de Walter Benjamin sobre a experiência
contrária: desencaixotar uma biblioteca. Teve a ajuda de muitos e bons
amigos, que nomeia e aos quais agradece, e que fizeram uma arrumação
ordenada e etiquetada para que ele pudesse localizar os volumes
guardados. O destino da biblioteca era o Canadá, onde Manguel viveu bons
tempos, e que lhe concedeu cidadania nos anos 1980, precisamente quando
ele sentiu que podia e devia entregar-se a uma atividade cívica que
extravasava do mundo estrito da investigação e do ensino. Empacotar
todos os livros era uma empreitada triste para quem construiu uma vida
em torno deles, um homem capaz de citações como uma enciclopédia
literária viva, hábil numa navegação de relacionamentos entre obras que
pareciam não ter parentesco.
Quando já
imaginava a vida sem os 35 mil amigos, Manguel recebeu um convite
extraordinário: ser diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, na
Buenos Aires onde nasceu em 1948. E aqueles corredores que foram
atravessados por um anterior diretor, Jorge Luis Borges, que ali se
orientava sem hesitações apesar de estar cego, acolhem agora o homem que
na juventude tantas vezes leu para o autor do Aleph, numa reviravolta que faz todo o sentido, se é que faz falta uma vida encaminhar-se com alguma espécie de lógica.
Descobriu
agora Manguel uma nova vocação, sempre com os livros em volta. Decidiu
ser o renovador de uma casa a precisar de ser arejada e renovada.
E
tudo isto me veio à cabeça por causa de uma palavra em que tropecei
neste livro de divagações (e uma elegia) de Manguel: "estólido", na
página 126. Levantei-me de novo, fui à estante, tirei o volume que tem o
E. Agora já sei o que significa e de onde vem. Do latim, está-se mesmo a
ver.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
14/04/18
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