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"OBSERVADOR"
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Depois de 132 anos a Sociedade Guilherme Cossoul
precisa de uma morada nova
precisa de uma morada nova
Ao fim de 132 anos a ensinar música, teatro e literatura, a Sociedade Guilherme Cossoul perde as instalações. O prédio foi vendido por 3 milhões e 700 mil euros. Agora têm até ao fim do ano para sair.
“Houve um tempo em que as cidades eram lugares de troca, hoje em dia as
cidades tornaram-se apenas lugares de venda.” É assim que o encenador
Jorge Silva Melo resume a história da Sociedade Guilherme Cossoul,
também conhecida por “Conservatório da Esperança”: depois de 132 anos a
mobilizar a cultura, em especial o teatro e a música no bairro da
Madragoa, o edifício que albergava a Cossoul, na avenida D. Carlos I, em
Lisboa, foi vendido e os novos donos deram-lhes até ao final deste ano
para desocuparem o edifício. A Câmara Municipal de Lisboa reconhece o
mérito da Sociedade e promete arranjar um espaço alternativo.
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Uma festa com Beatriz Costa e outros associados da Guilherme Cossoul, na década de 40 do século passado |
Mas como se empacotam 132 anos a ensinar música, teatro, literatura,
alfabetização dos moradores do bairro, os bailes e as festas, o teatro
onde começaram Raul Solnado, Henrique Viana, onde Camané cantou ainda em
criança, onde, nos anos 50 e 60, despontaram os primeiros grupos de
teatro experimental, onde pela primeira vez se encenou Harold Pinter,
Luís Francisco Rebelo, Sttau Monteiro, onde o pintor João Vieira fazia
cenários de inspiração Surrealista, onde a atriz Fernanda Alves levava o
poeta Ernesto Sampaio, onde se encontravam para conspirar os elementos
do MUD Juvenil.
Finalmente onde se faz o Festival Literário Reverso, onde há um curso
de teatro, projetos conjuntos com a Fundação Calouste Gulbenkian,
Teatro Maria Matos, Casa Fernando Pessoa?
Recentemente, num texto publicado no Babelia (suplemento Cultural do Jornal El Pais), o escritor espanhol António Muñoz Molina
falava do desaparecimento do centro histórico das cidades, que expulsa
os seus habitantes para se tornar uma Disneylândia destinada ao
entretenimento de turistas. Paulo Tavares, atual presidente da Cossoul
lamenta “que os governantes não tenham um sentido e um conhecimento
histórico forte e que deixem desaparecer tudo o que tem passado e depois
invistam em sítios ‘modernos’, ‘trendy’, onde depois usam móveis
antigos para decoração e se fazem letreiros e montras a imitar coisas do
passado que afinal não têm. É um paradoxo”.
Estamos, pois, cada
vez mais longe dessa cidade inaugural descrita por Baudelaire, onde as
pessoas se encontravam para trocar. Na primeira década do milénio o
edifício da Cossoul foi comprado por um consórcio espanhol que deixou
ficar a associação. Mas em Março deste ano o prédio foi vendido por 3
milhões e 700 mil euros para aquilo que deverá ser um prédio de
apartamentos. Com a venda veio a ordem de saída para a Cossoul e mais
alguns idosos que habitam os últimos andares do prédio.
Apesar de a
venda estar iminente, pelo menos desde 2008, quando o prédio foi
comprado pelo consórcio espanhol, nenhum executivo camarário conseguiu
resolver o futuro da instituição. Várias propostas foram estudadas mas a
verdade é que com apenas 6 meses até à saída, a autarquia ainda está a
estudar um novo espaço para realojar a Cossoul. Questionada pelo
Observador, a vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto, afirmou estar
empenhada “desde há vários meses, na pesquisa de um espaço que seja
conveniente à atividade da Sociedade e que seja sustentável, a longo
prazo”.
Guilherme Cossoul, uma história feita de utopias
Mais conhecida por “Cossoul”, a Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul, com
entrada principal na avenida D. Carlos I e as traseiras na rua da
Esperança, na Madragoa, é um espaço edificado por várias utopias e
outros tantos desencantos de um país que, como lembra Jorge Silva Melo,
“não teve uma aristocracia que mandasse construir teatros ao lado dos
palácios, como na Europa central”. Guilherme Cossoul, filho de músicos
italianos que circulavam pelas cortes europeias até se estabeleceram em
Lisboa, era compositor e maestro e foi o fundador da Associação dos
Bombeiros Voluntários de Lisboa. É o seu olhar tranquilo e o seu porte
imponente que nos recebem à entrada da coletividade, ainda tão cheia de
traços da sua longa história que o passado parece ser tangível.
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Retrato de Guilherme Cossoul |
A
Cossoul passou a ser o polo dinamizador da Madragoa, lugar de encontro,
de alfabetização, de festas de Natal para as crianças, de bailes com a
orquestra da Sociedade, dos primeiros e únicos espetáculos de teatro da
vida de muita gente. Apesar de ter nascido ligada à música é o teatro
que vai marcar a história da associação. Falámos com Jorge Silva Melo,
sempre uma memória viva e um olhar claro sobre a cidade de Lisboa. O
diretor dos Artistas Unidos recorda o papel da instituição na vida
cultural lisboeta:
Acho que a primeira vez que lá fui tinha 15 anos e vi ‘A Castro’, com
Glicínia Quartin e Fernanda Alves, encenada por Carlos Avilez. Fiquei
tão impressionado. Nesses anos a Cossoul tinha-se tornado o único espaço
em Lisboa onde se fazia teatro experimental pois, como era um grupo
amador, não tinha sido proibido Estado Novo. O bairro da Madragoa era o
mais pobre mas também o mais politizado da cidade, ali se juntava gente
que militava clandestinamente no PCP, gente como o Otávio Pato ou o José
Manuel Tengarrinha e gente do MUD juvenil. Era a realização da utopia
de jovens burgueses: fazerem arte com o povo, estarem perto do povo.
Isto atraia muita gente. Pessoas ligadas ao teatro mas vindas das
classes populares como Varela Silva, Luis Alberto e o Jacinto Ramos (que
tinha uma papelaria no bairro) misturavam-se com jovens intelectuais
como Glicínia Quartin. Tinham os seus trabalhos e à noite iam para ali
ensaiar. Raul Solnado e Henrique Viana começaram no teatro ali. A fama
começou a espalhar-se de tal maneira que até Amélia Rey Colaço e Palmira
Bastos do Nacional, passaram a ir ver todas as peças e até a recrutar
atores para o Dona Maria II, como foi o caso de Henrique Viana. Foi
também com atores da Cossoul que Carlos Avilez foi fundar o TEC — Teatro
Experimental de Cascais e que se fizeram os primeiros filmes do chamado
Cinema Novo. Foi, sem dúvida, o palco da renovação teatral portuguesa
da segunda metade do século XX. Nos anos 80, Luís Alpiarça voltou a dar
uma dinâmica interessante à associação, com atores ligados à Barraca e à
Comuna e um repertório de autores muito ligados à esquerda europeia
como Dário Fo. Foram eles que acolheram os Artistas Unidos quando também
nós ficámos sem as instalações da Capital. Depois fizemos lá uma peça
de Pinter para comemorar os 120 anos. Recentemente para mim a melhor
coisa da Cossoul era o Sr Teste [livraria/alfarrabista], que entretanto
saiu de lá. Faz-me muita impressão que a sociedade saia dali. Aquela
zona de Lisboa nunca mais será a mesma para mim. É um tempo que acaba.”
Atualmente a sociedade mostra uma enorme capacidade de rejuvenescimento,
com uma direção composta por pessoas com menos de 40 anos e uma
assumida consciência “que manter o legado destes 132 anos é não deixar
de trabalhar com a comunidade mas fazer coisas novas. Não somos uma
sociedade de bairro onde os velhinhos vão jogar à sueca. Neste momento
temos um curso de teatro, um grupo de teatro residente [o coletivo
Prisma], uma galeria de arte, um bar com programação própria, uma
editora [Artefacto], um festival literário [o Reverso], uma livraria,
uma biblioteca e está a ser criada uma banda de música em parceria com a
Gulbenkian destinada a crianças em risco. Trabalham aqui diariamente 9
pessoas não remuneradas e apenas duas recebem salário. Não temos
qualquer possibilidade de, sozinhos, viabilizarmos um espaço”, diz Paulo
Tavares, poeta e tradutor, e agora à frente da Cossoul. “No final deste
mês começamos com as sessões de leitura mensais dinamizadas pelo poeta
Vasco Gato.”
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Os bailes da Cossoul foram um marco nas décadas de 40 e 50 em Lisboa. Em primeiro plano o jovem ator Raul Solnado, mais um “filho” da casa. Imagem: Cortesia da SIGC |
Neste quase século e meio de vida, a Sociedade, passou pela
Monarquia, a República, o Estado Novo, a Revolução de Abril, a União
Europeia. “João Soares comprou um espaço para alojar a Cossoul, para que
tivéssemos melhores condições, mas a mudança de executivo na autarquia
inviabilizou o projeto. Em 2010, António Costa, conseguiu destinar-lhes o
Palácio de Laguares, em Campolide, mas o presidente da Junta de
Freguesia não aceitou. Agora que a apoteose imobiliária lisboeta falou
mais alto, o futuro permanece incerto e urgente”, afirma Paulo Tavares.
Jorge
Silva Melo diz que o ideal era que “encontrassem um sítio com pessoas”.
A possibilidade de partilhar um espaço com outra entidade também não é
descartada por Paulo Tavares, nem pela vereadora da Cultura que declarou
ao Observador que “a partilha de recursos e, consequentemente, o
estabelecimento de conexões e de diálogos pode ser benéfica a vários
projetos, contudo é necessário que os projetos sejam compatíveis,
relacionáveis”.
* Vai mal governada a cidade em que um presidente de Junta de Freguesia manda mais que o Presidente da Câmara.
O Pavilhão de Portugal fechado serve para alguma coisa, a Guilherme Cossul serve Portugal há 132 anos.
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