ADÃO E OS NETOS
1Assisti a um comentador comparar os
terroristas do Daesh aos miúdos que se portaram mal em Torremolinos. Vi
um jornalista a dizer que se calhar o trabalho infantil até não seria
muito mau porque evitaria esse género de situações. E assisti ao
relambório costumeiro sobre esta horrível geração. A tal que é muito
pior do que a anterior, como a anterior foi pior do que a que precedeu, e
assim sucessivamente até ao tempo em que o Adão se comparou aos netos e
verificou que estes eram uns preguiçosos, uns egoístas, uns
mal-educados e que só pensavam em porcarias.
Como
na minha geração ou em qualquer idade, há gente mais estúpida e menos
estúpida, mais educada e menos educada, mais ou menos civilizada, todas
as gerações têm os seus Rogeiros.
Nesta história de copos e disparates, e apesar de já ter sido há muito tempo, a minha memória ainda está razoavelmente fresca.
Lembro-me
de que quando tinha a idade desses miúdos também havia episódios do
género, alguns bem piores. Tinham menos divulgação. Não havia Facebook,
as edições dos jornais não tinham de tentar dar notícias de minuto a
minuto, não havia sete ou oito televisões a precisar de alimentar 24
horas de espaço. Mas que havia muita coisa do género, oh se havia.
Imagine-se
o que seria o mundo da minha geração com as redes sociais, telemóveis e
jornais, televisões e quejandos a ter de estar constantemente a
alimentar o cidadão. Podíamos publicar filmes de miúdos de 13 anos a
beber cálices de São Domingos e Aldeias Velhas, servidos pelos
empregados, em cafés em frente aos liceus. Pôr no Facebook rapazes e
raparigas de 15 anos a cravar cigarros a professores. Filmar cenas de
pancadaria entre liceus. Ou então fazer a divulgação online da
humilhação diária que era feita aos maricas ou os insultos a ciganos,
negros ou qualquer outra etnia diferente da maioritária.
Convenhamos,
na altura ninguém se lembraria de tentar que um qualquer desses
episódios se tornasse viral: eram coisas corriqueiras. Uma coisa
parecida com um filme de gatinhos de agora. Ninguém quereria saber.
O
facto de a minha geração ter feito disparates similares ao do de
Torremolinos, ter um acesso mais descontrolado a álcool e
estupefacientes e ser bem mais preconceituosa do que esta serve para
desculpar estes miúdos? Claro que não. O que é absolutamente disparatado
é tirar conclusões sobre irresponsabilidade ou falta de educação ou o
que seja duma inteira geração com episódios, ainda que lamentáveis,
parecidos com a de qualquer outra.
Também
não caio no extremo oposto aos disparates do costume. Não desconheço a
obsessão pela fama desta geração, com se de um fim em si mesmo se
tratasse; o desprezo pela vida privada, sua e dos outros; a falta de
vontade de começar uma vida fora do conforto dos pais, que está longe de
ser apenas explicada pelas condições económicas atuais e que está a
trazer problemas sociodemográficos graves; a falta de empenho na
política e em causas sociais; uma ansiedade desmesurada, de que a mania
com os smartphones e a sua constante consulta é um excelente exemplo; a
maneira como desprezam tanta informação a que têm acesso e não a
convertem em conhecimento.
Mas se
olharmos para estes possíveis defeitos que vemos nesta geração, quantos
também não assacamos à nossa? Aos homens e mulheres entre os 40 e os 50
anos? Talvez a parte da saída da casa dos pais, e mesmo isso...
Seja
como for, esta geração está em termos gerais mais bem preparada do que a
minha e é bem menos preconceituosa e mais tolerante. Vive num mundo em
que não são percetíveis os inimigos e os amigos, em que a autoridade
está em crise e as referências não existem, está - como nós todos -
carente de causas e a instabilidade é um dado adquirido: o emprego não é
certo, a tecnologia muda de dia para dia. Ainda assim, não me recordo
de uma geração que mostre tanta apetência pela criatividade, curiosa das
potencialidade da tecnologia, liberta de complexos e culpas que nos
toldavam.
E tudo isto a reboque de um episódio que pouco terá que ver com um possível retrato geracional.
Como
rezava um artigo antigo da Time, e onde eram fundamentados com números
alguns dos possíveis defeitos de uma geração, esta não é pior ou melhor
do que as anteriores, é apenas mais uma a adaptar-se ao mundo em que
vive.
2 Na mesma semana, Sean Spicer,
porta-voz da Casa Branca, afirmou que "nem Hitler desceu tão baixo a
ponto de usar armas químicas", Donald Trump deu ordens para um
bombardeamento ao Iraque, que foi à Síria, entre uma garfada num bolo de
chocolate e largou a maior bomba desde a de Hiroxima no Afeganistão.
O
país que nos habituamos a ver como o grande bastião da democracia e da
liberdade (com todos os seus defeitos) está entregue a uma coligação de
ignorantes e inconscientes. A maior máquina de guerra que o mundo já
conheceu está ao dispor de um bando de loucos, arrogantes e deslumbrados
associados a um perigoso ditador - este pretenso arrufo entre Trump e
Putin cheira a esturro por todo o lado.
Não
me lembro, nas últimas décadas, de ver um mundo tão perigoso. A própria
ameaça islamita parece insignificante - e que bem sabemos que não é -
em face da que vem da Casa Branca. Nada mais amedrontante do que um
louco ignorante com a chave para o botão do fim do mundo.
Para
não variar, resta-nos a fé na democracia americana e nas suas
instituições. Se não funcionar estamos muito para além de tramados.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
16/04/17
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