Esperança com os pés na terra
Podemos discordar sobre muitas facetas da
nossa condição humana, mas há um amplo consenso sobre o papel central da
esperança. Sem a perspetiva de um futuro melhor, a existência
tornar-se-ia sufocante e insuportável. Durante milénios, o Ocidente
projetou a esperança num horizonte transcendente, associado à religião.
Às igrejas coube um longo monopólio na organização e gestão da esperança
da maioria esmagadora das pessoas e dos povos.
A grande rutura do
século XVIII, com as Luzes, foi a secularização da esperança. O futuro
passou da teologia para o domínio das ciências e das técnicas. Passou da
espera pela salvação para a realização tecnológica. As Luzes, dominadas
por uma espécie de fervor racionalista, sustentavam que a verdadeira
esperança só poderia triunfar abolindo a superstição, isto é, a falsa
esperança alimentada pelas trevas da ignorância e do analfabetismo.
Na
verdade, os nossos níveis de conforto e qualidade de vida do século XXI
são incomparáveis com os do passado recente. Hoje, qualquer mulher
pobre, num país desenvolvido, tem muito mais probabilidades de não
perder os seus filhos no parto do que o teve a rainha Victoria, senhora
do maior império mundial. Todavia, a superstição, longe de ter sido
abolida, encontrou novas formas de contaminar a esperança na nossa idade
tecnocientífica. Recentemente, a NASA revelou a existência de sete
planetas com potencialidade para suportar formas de vida, no sistema
TRAPPIST-1. É curioso que a reação mais comum, refletida nas redes
sociais, glorificava as possibilidades de eventual colonização humana
desses novos planetas. Na verdade, desde o fim do programa Apollo (1975)
que as viagens espaciais tripuladas entraram em hibernação. A
astronomia tem aumentado imenso os seus conhecimentos, mas é,
essencialmente, uma nobre ciência contemplativa. Ainda não foi possível
viajar até Marte, quanto mais fazer uma viagem de 40 anos-luz!
Uma
das raízes das crenças que alimentam a superstição moderna reside na
falta de diálogo e cooperação entre as diferentes ciências. A revista
Lancet publicou recentemente um estudo com projeções demográficas para
35 países desenvolvidos, tendo como horizonte o ano 2030. Os resultados
apontam para perspetivas de notável crescimento da expectativa de vida.
Por exemplo, na população feminina nascida na Coreia do Sul a partir
desse ano, a expectativa de sobrevivência ultrapassa os 90 anos (87 anos
para Portugal).
O que os estudos demográficos não acentuam com ênfase
suficiente é que os pressupostos de que partem são frágeis e podem ser
alterados pelo curso incerto do mundo. Por exemplo: a mudança
político-económica na Rússia, entre 1988 e 1994, fez cair em cinco anos a
esperança de vida (de 69 para 64). Imaginemos o incremento da
mortalidade, regional e global, que poderá resultar das crises humanas e
das explosões bélicas, causadas pelo agravamento acelerado das
condições ambientais e climáticas... A demografia faria bem em escutar
as ciências da Terra, a estratégia, as ciências políticas. Tanto o caso
dos novos planetas como o das projeções demográficas revelam-nos como a
verdadeira esperança necessita, além do conhecimento, também da virtude
da coragem. Da capacidade de olhar a realidade de frente, sobretudo
quando ela é o contrário do que desejaríamos.
Pelo contrário, a
superstição recusa a principal lição do conhecimento científico
contemporâneo: submetida por nós à mais vil das usuras e espoliações, a
nossa Terra é, contudo, o nosso tesouro mais precioso. Ela é a nossa
casa comum. Única e insubstituível.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
01/03/17
.
Sem comentários:
Enviar um comentário