“É proibido…
mas pode-se fazer”
O "eduquês", que sempre foi inimigo da avaliação, está de volta, mais forte do que antes.
O humorista brasileiro Millôr Fernandes respondeu assim à pergunta
sobre se um químico pode tomar decisões "precipitadas”: pode, mas não é
uma "boa solução". Começou mal o novo ministro da Educação, Tiago
Brandão Rodrigues, bioquímico de formação, ao tomar a decisão de acabar
com os exames no ensino básico antes do 9.º ano, introduzindo “provas de
aferição” a meio dos ciclos desse nível de escolaridade. A sua mudança
foi apressada. Não houve nenhum estudo fundamentado nem nenhum debate
público. Foi uma medida tomada apenas com base em preconceitos, de
natureza ideológica, que vingam em certos sectores do PS e dos seus
parceiros. Confrontado com opiniões contrárias, o ministro ainda se
desdobrou em reuniões com directores de escola, mas não escapou à
censura presidencial: a sua tão urgente e radical reforma acabou por ser
matizada pelo Presidente da República. As escolas, querendo, podem
afinal realizar exames. Com Marcelo Rebelo de Sousa ficou uma coisa do
tipo “é proibido, mas pode-se fazer”.
Critico o ministro a
contragosto. Quando tomou posse, escrevi, com não disfarçada alegria,
que “o novo ministro da Educação é novo”. Era alguém que vinha de fora,
de uma geração que não tinha encontrado futuro no país mas que queria
contribuir para o futuro do país. Os professores tinham sofrido
desilusões com os ministros anteriores: Maria de Lurdes Rodrigues
originou uma impressionante manifestação de professores e Nuno Crato,
que tinha ido a ministro nos braços dos professores, acabou no chão sem
um braço que lhe acudisse. Acreditei que o novo titular da pasta ia
procurar redignificar os professores, uma profissão que conheceu nas
últimas décadas um processo de proletarização. Teria feito bem se
tivesse mobilizado os professores, que são o esteio da escola,
pedindo-lhes ajuda no caminho a tomar. Em vez disso, seguiu as vozes
mais extremistas dos partidos no poder, que reclamavam, com
justificações delirantes, o fim imediato dos exames, vistos como um mal
absoluto. Uma das razões era que os exames prejudicavam os infantes que,
coitadinhos, não podiam ser expostos a esforços intelectuais mais
intensos (como se a escola não fosse o meio que a sociedade criou para
preparar para a vida e como se a vida fosse fácil). Outra era que tinha
voltado a quarta classe de antigamente, existindo uma malvada intenção
governamental de exclusão precoce (nada mais errado já que os exames só
contavam com 30 por cento para a nota do aluno). Outra ainda dizia que
os exames eram antipedagógicos, pois a boa pedagogia dispensaria a
avaliação (os emissores dessa opinião são, como é óbvio, contra qualquer
forma de avaliação).
O timing escolhido para a alteração
não podia ser pior. Não faz qualquer sentido mudar as regras a meio do
jogo, isto é, do ano lectivo. O ministro prosseguiu a nossa má tradição,
que consiste em cada novo governante querer recomeçar tudo. Além disso,
não explicou suficientemente: Por que razão não deu uma entrevista em
que explanasse a sua visão em vez de se refugiar atrás de um
comunicado? E por que não nomeou um grupo de trabalho que apurasse as
vantagens de substituir umas provas nuns anos por outras noutros anos?
As “provas de aferição” vão ser inúteis, pois as crianças não se vão
preocupar com provas que não contam para nada (não havendo provas,
ninguém estuda!) e também porque não existe qualquer registo histórico
para comparar os resultados. De resto, a prova no 2.º ano parece-me
particularmente absurda, pois as crianças nessa fase ainda não lêem nem
escrevem com fluência. Já uma prova no 4.º ano, ainda que não contasse
para os alunos, poderia indicar sobre se as escolas estavam a cumprir a
sua missão, designadamente formando leitores capazes.
O nosso
sistema educativo precisa de estabilidade. Os professores e os alunos
precisam de fazer o seu trabalho em paz, sabendo atempadamente o que os
espera. Agora, com a legislação promulgada, está instalada a entropia
nas escolas. Umas vão fazer o que já faziam, outras vão fazer outra
coisa, adoptando novas provas preparadas à pressa. O argumento de que a
escolha do modelo de avaliação, o antigo ou o novo, assenta na autonomia
das escolas não passa de uma desculpa esfarrapada. Em primeiro lugar,
porque essa autonomia tem sido uma palavra vã e, em segundo, porque
fivou um regime transitório de provas e, para o ano, a proclamada
autonomia já não vai existir. Receio que as escolas vão, moldadas como
estão ao centralismo, alinhar com o Ministério.
“Provas de
aferição” é um termo de eduquês. O "eduquês", que sempre foi inimigo da
avaliação, está de volta, mais forte do que antes. Nuno Crato, revelando
inabilidade política, tornou os exames no ícone da sua política,
esquecendo que eles são um meio e não um fim. Agora não me admira nada –
nem deve admirar a ele – que seja a vez dos iconoclastas.
Professor universitário
IN "PÚBLICO"
13/04/16
.
Sem comentários:
Enviar um comentário