Abuso sexual:
duvidar da vítima não pode ser
o ponto de partida
Falar
de abuso sexual é sempre difícil. Quero acreditar que é impossível
alguém considerar que este seja um crime menor, mas invariavelmente a
palavra da vítima é posta em causa a não ser em casos extremos, quando
as marcas deixadas no corpo são demasiado óbvias ou até mesmo mortais.
Mesmo assim – basta pensar no caso daquele milionário saudita que foi
ilibado em Londres porque supostamente apenas escorregou e caiu em cima
da vítima, penetrando-a – o dinheiro continua muitas vezes a ser o
melhor aliado da resolução destes casos e da desculpabilização dos
agressores. Como se a integridade física, a dignidade da vítima de
violação (seja mulher ou homem) e os seus direitos fossem simplesmente
descartáveis quando o poder do agressor fala mais alto.
O recente
caso da cantora Kesha é apenas mais um entre muitos. Anda desde 2014 em
tribunais, acusando o seu produtor de a ter agredido, ameaçado, coagido
e violado sob o efeito de drogas mais do que uma vez. Esteve em
reabilitação com distúrbios alimentares na sequência dos supostos
ataques e fez queixa às autoridades quando se sentiu capaz para tamanha
exposição. Mas mesmo assim o tribunal acaba de lhe negar a possibilidade
de dar por findo o contrato que tem com o suposto agressor, uma vez que
a Sony investiu 60 milhões na sua carreira.
Pôr a palavra da
vítima em causa dentro da indústria do entretenimento (e não só!) é um
clássico. Ainda me recordo de há uns tempos ler as declarações de
Madonna, ao assumir que tinha sido violada no início da carreira
mas que nunca tinha feito queixa. Porquê? “Porque já foste violada, não
há nada a fazer. É demasiado humilhante, simplesmente não vale a pena”.
Mas devia valer e todas as vítimas deveriam ter noção de que a lei as
protege e que as autoridades as vão levar a sério.
A vítima que não consegue falar após o episódio abusivo é menos vítima?
Outro dos casos mais mediáticos foi o que envolveu o ator Bill Cosby,
cujas dezenas de vítimas forma silenciadas com ameaças após os ataques e
consequentemente demoraram décadas a conseguir quebrar o silêncio. Uma
vítima que não consegue falar imediatamente após o episódio abusivo é
menos vítima? O silêncio significa conivência? Ou será simplesmente um
reflexo natural de resposta ao trauma? Todos sabemos – ou deveríamos
saber – quão difícil é para uma vítima de tamanho abuso ter de reviver a
experiência ao conta-la vezes sem fim às autoridades e passar por
exames físicos altamente intrusivos.
Claro que é unânime também
que é imperativo fazê-lo. Que é essencial pedir justiça. Mas também é
preciso que a justiça funcione e que a vítima esteja rodeada de apoio,
seja das autoridades, dos amigos e da família. Muitas vezes os mesmos
que lhe apontam o dedo, levantam a dúvida com um "tens mesmo a
certeza?", lhe fazem sentir vergonha ou pedem silêncio "para o bem de
todos".
Foi isso que mais me impressionou no caso Cosby: a
palavra das vítimas era precisamente a primeira a ser posta em causa.
Como se alguém quisesse vir dizer em praça pública que foi violada, em
busca de cinco minutos de fama (o argumento mais comum). E como se
Cosby, por ter a eterna imagem de “pai” das séries televisivas, não
fosse simplesmente capaz de tal crime. Esquecendo-nos, por exemplo, de
que a larga maioria da violações acontece dentro do círculo íntimo da
vítima.
No caso de Kesha, ainda a procissão vai no adro, sem se
chegar a conclusões sobre a veracidade dos abusos, mas esta mulher está
praticamente a ser obrigada pelos tribunais a continuar a trabalhar com o
homem que a poderá ter violado repetidamente. O pedido de rescisão do
contrato assinado anteriormente a tais episódios foi negado - palavras
da juíza, - porque não pode “autorizar a quebra de um contrato que foi
pesadamente negociado entre as partes” quando “não há indícios de danos
irreparáveis”. Ou seja, a possibilidade de ela ter sido repetidamente
abusada não é, por si só, um dano irreparável. Os 60 milhões
aparentemente falam mais alto.
Conseguem perceber quão nefasta é a
mensagem que estamos a passar tanto a vítimas como a agressores? Não
estou a defender que uma acusação seja, por si só, motivo para meter a
cabeça de alguém no cepo. É para isso que existem autoridades
competentes e investigações que devem ser postas em curso. Mas também
não é aceitável que a vítima fique com a cabeça no cepo da descrença
automaticamente. Não admira que dados oficiais demonstrem que nos
Estados Unidos apenas 32% dos casos de abuso sexual sejam reportados à autoridades. Na Europa, uma em cada dez mulheres já foi vítima de agressões sexuais (dados do último relatório europeu sobre o tema). Pouco mais de 10% apresentaram queixa. Isto faz algum sentido?
IN "EXPRESSO"
22/02/16
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