O primeiro-ministro
tem medo
A esquerda do
PSF desconfia dele, a esquerda à esquerda dos socialistas abomina-o, a
direita chama-o cínico e a extrema-direita vê nele um inimigo. Apesar de
tanta hostilidade, Manuel Valls está prestes a completar um ano como
primeiro-ministro francês e, a par da tentativa de recuperar a economia,
combate como ninguém para evitar a derrota anunciada dos socialistas
nas eleições departamentais marcadas para dia 22, com segunda volta no
domingo seguinte. Determinação que o leva agora a diabolizar a Frente
Nacional (FN), ao ponto de ter dado uma entrevista à rádio Europe 1 onde
admite temer a extrema-direita, favorita nas sondagens. "Tenho medo
pelo meu país. Tenho medo que fracasse contra a FN", afirmou Valls,
provocando uma chuva de críticas.
Que Valls arremeta contra a FN
não deve admirar. Entre ele e Marine le Pen há um ódio deestimação. O
político socialista não se deixa convencer pelo esforço de moderação de
Marine, que cuida de ter uma imagem pública menos polémica do que a de
Jean-Marie le Pen, o pai e líder histórico da FN, tão conhecido pelas
diatribes antissemitas como por ter uma vez, graças às divisões na
esquerda, chegado à segunda volta das presidenciais. E nos círculos da
extrema-direita não falta quem deteste o homem que o presidente François
Hollande promoveu a primeiro-ministro para estancar o descrédito
socialista. Assim, em abril de 2014, semanas depois da passagem de Valls
da pasta do Interior para a chefia do governo, saiu um livro que tinha
como objetivo óbvio denegri-lo. "Disposto a todos os compromissos",
"selecionado pelas elites mundialistas", "um puro apparatchik", são
algumas das acusações em O Verdadeiro Rosto de Manuel Valls, onde
sobressaem ataques mais sórdidos, como o dizer que passou de
pró-palestiniano a pró-israelita assim que se casou, em segundas
núpcias, com uma violinista judia. A própria Marine acha Valls "um homem
perigoso, que não respeita as liberdades individuais e públicas".
O
que está em causa, para já, são as departamentais, em que as sondagens
dão 30% de intenções de voto à FN, confirmando o estatuto de primeiro
partido que conquistou nas europeias do ano passado, quando obteve 25% e
ganhou mais assentos em Estrasburgo do que os partidos portugueses
somados. Mas em França o que conta mesmo são as presidenciais, afinal o
chefe do Estado é que preside ao conselho de ministros, e por isso 2017
será um ano decisivo, com Marine cada vez mais ambiciosa perante um PSF
que deverá recandidatar Hollande e uma UMP, a direita clássica, que tudo
indica apostará no ex-presidente Nicolas Sarkozy.
Curioso é que a
Sr.ª Le Pen e Valls sejam imaginados num duelo em 2022, nas
presidenciais seguintes. Pelo menos é esse o cenário de Submissão, o
mais recente livro de Michel Houellebecq, que culmina na vitória de um
político muçulmano contra a candidata da extrema-direita, com Valls a
ficar--se pela primeira volta e a juntar-se numa bizarra frente
republicana que apoia Ben Abbes, a personagem presidencial inventada
pelo escritor.
Ora, a chamada frente republicana, que costuma
congregar todas as forças contra a FN caso esta esteja em condições de
derrotar um candidato dos partidos tradicionais, funcionou bem no
passado, sobretudo em 2002, quando Jacques Chirac esmagou o pai Le Pen
com o voto não só dos neogaullistas mas também da esquerda. Funcionou
também para manter uma lei eleitoral que afastava do parlamento um
partido que recolhia mais de 10% dos votos. Hoje, porém, há tentações na
direita de entendimento com a FN, mesmo que os mais argutos da UMP
saibam que arriscam ser submergidos pela extrema-direita e prefiram
antes apoderar--se de alguns cavalos de batalha. Sarkozy fê-lo quando se
tornou defensor de mais poder à polícia e de novos limites à imigração.
Da
direita vieram agora críticas à frase do medo dita por Valls, com
deputados a afirmarem que o primeiro-ministro socialista fazia o jogo da
FN ao elegê-la como rival. Na verdade, Valls pretende, sim, mobilizar o
eleitorado de esquerda, cada vez mais abstencionista, acenando-lhe com o
papão da vitória de Marine le Pen. É uma estratégia que resultou há
pouco numa eleição parcial , mas que não é garantido que se repita num
escrutínio nacional.
É que a economia francesa continua a fazer
fraca figura (no ano passado até foi ultrapassada pela do Reino Unido) e
em 2015 o crescimento não deve ir além do 1%, abaixo da média da zona
euro. Não admira que Hollande tenha apenas 21% de opiniões positivas e
Valls se fique pelos 32%, valores preocupantes para quem, num caso,
ambiciona a reeleição e, no noutro, vai a meio da carreira.
Na
verdade, Valls não disse que tinha medo a título pessoal. Tinha medo
pelo país. Vindo de quem vem, é um alerta fortíssimo. O
primeiro-ministro nasceu em Barcelona e naturalizou-se, o que significa
que é francês por escolha. Campeão da república, promete mão dura com
aqueles que querem fazer do islão um inimigo de França, mas também não
pactua com os paladinos da pureza gaulesa, que proliferam na
extrema-direita. No fundo, quer que a França se mantenha fiel a si
própria, um país que aceita que o primeiro-ministro (e mesmo um
presidente) possa ter nascido estrangeiro, algo que nem os Estados
Unidos preveem. Claro que ser catalogado de "Sarkozy socialista", como
lhe chamou em tempos a Economist, não favorece um político que quer
congregar a esquerda para fazer barreira a uma FN que mete medo.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
14/03/15
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