No país
dos bons samaritanos
Uma das coisas mais fascinantes neste país é a facilidade com que se
agarra nos mais básicos interesses corporativos e, com um pouco de base
nas bochechas, um traço de batom nos lábios e algum rímel nas pestanas,
se lhes passa a chamar “interesse público”.
Se o caro leitor reparar bem, não há corporação,
ordem ou sindicato que defenda, em primeiro lugar, os interesses dos
seus associados. A defesa dos interesses dos seus associados é apenas e
sempre um efeito colateral da defesa do interesse público.
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Os
trabalhadores dos transportes públicos fazem greve para defender a
qualidade do serviço que prestam à comunidade, os professores fazem
greve para defender o ensino público, os médicos fazem greve para
defender os pacientes, até os pilotos fazem greve para defender a
segurança dos passageiros.
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Portugal é uma borrasca de piedosos samaritanos, cheios de vontade de oferecer as suas vidas e o seu trabalho pelo bem da pátria.
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Portugal é uma borrasca de piedosos samaritanos, cheios de vontade de oferecer as suas vidas e o seu trabalho pelo bem da pátria.
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Até que chegamos ao caso que me traz
aqui hoje: o conflito do PÚBLICO com a Comissão da Carteira dos
Jornalistas, que tem vindo a proibir, cada vez com maior empenho, os
estagiários curriculares de assinarem os seus próprios textos, de forma a
proteger o “acto jornalístico” de pequenas criaturas destituídas de
qualquer espécie de “título profissional”.
No meio de toda a sua
argumentação, há um só ponto que faz sentido: o facto de os estagiários
não estarem sujeitos a regimes de incompatibilidade, sigilo ou à
invocação de cláusulas de consciência. Mas mesmo este ponto parece
ignorar por completo a variedade do trabalho jornalístico: escrever uma
notícia sobre o concerto de Miley Cyrus, o estado das costas de Neymar
ou a proliferação de gafanhotos no norte de África não envolve nenhum
acesso particular a fontes – e não se percebe por que razão um
estagiário há-de ser impedido de assinar soft news se os textos assinados são tudo aquilo que ele leva de uma redacção e que pode pôr no currículo.
Barricando-se
na especificidade do “acto jornalístico”, o que a Comissão está a fazer
é a proteger-se a si própria, aos jornalistas que já o são (como se
impedir um estagiário de assinar protegesse alguma coisa que não a
aldrabice de outros virem a assinar por ele), e, sobretudo, a abrir
campo à velha negociata, mal se vislumbra um buraquinho onde enfiar o
nariz por entre leis proteccionistas.
E o buraco apenso a este caso foi
desvendado no sábado pela jornalista Ana Henriques, que nos informava
existirem “pós-graduações em Jornalismo cujos alunos podem, mediante o
pagamento de propinas, aceder a estágios remunerados em redacções de
diferentes grupos de comunicação social – e assinar os seus trabalhos.”
Ou
seja, se eu for um estagiário curricular pelintra não tenho qualquer
hipótese de colocar uma assinatura num texto. Mas se for um pós-graduado
pintarolas com capacidade para largar 4350 euros em propinas (“montante
recuperado em aproximadamente 55% sob a forma de estágio profissional
remunerado”, informa a Universidade Nova), então aí já posso assinar
aquilo que escrevo.
Ora, o que me comove nesta atitude é verificar uma e
outra vez que a maior parte do proteccionismo que em Portugal finge
andar a defender o “interesse público” limita-se a patrocinar a
mercancia e a criar castas de privilegiados.
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A Comissão da Carteira está a fazer um péssimo trabalho na defesa dos estagiários curriculares. Mas está a fazer um óptimo trabalho na defesa das pós-graduações que oferecem estágios profissionais.
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A Comissão da Carteira está a fazer um péssimo trabalho na defesa dos estagiários curriculares. Mas está a fazer um óptimo trabalho na defesa das pós-graduações que oferecem estágios profissionais.
IN "PÚBLICO"
08/07/14
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