O PÚBLICO "colado"
ao Governo ou
escandalosamente contra?
Com o efervescer do clima eleitoral para as
europeias e com o aproximar de uma data eminentemente de grande
significado para Portugal, o 25 de Abril, aumenta o caudal de mensagens
de carácter político que recebo no meu correio electrónico. O conteúdo
dessas mensagens tem, muitas vezes, um sentido crítico radicalmente
oposto. A título de exemplo, destaco extractos de dois emails recebidos
no mesmíssimo dia:
O da "colagem": "Há muito que alguns leitores
do PÚBLICO notam uma mal disfarçada colagem do jornal à política do
actual Governo (...). A não publicação de notícias com realce sobre
algumas manifestações, como por exemplo a última manifestação dos
reformados em Lisboa, só causará estranheza a quem não se aperceber da
linha actual do PÚBLICO (...)."
O do "escandalosamente contra":
"Sou assinante do PÚBLICO e leitor desde sempre. Noto com preocupação
uma deriva do jornal num sentido menos objectivo com que crescentemente é
tratada matéria estritamente noticiosa. Escrevo-lhe, provedor, para lhe
assinalar que, do meu ponto de vista, é nesse sentido escandaloso e
inaceitável o texto que assinalo em epígrafe." (O referido texto era o
de um comentário, PÚBLICO, 16-04-2014, sobre a entrevista do
primeiro-ministro, Passos Coelho, à SIC). E o leitor acrescentava: "A
bem da continuidade de um projecto informativo que se gostaria
prosseguisse rigoroso e isento, ficar-lhe-ia muito grato (...) que
procurasse garantir que não voltem a reproduzir-se no PÚBLICO peças
"jornalísticas" (?) deste quilate."
Antes de mais, devo esclarecer
que acusei aos leitores a recepção das suas mensagens, mas não as
comentei em concreto (nem agora vou fazê-lo), pois aguardo, com o tempo
devido, a reacção interna do jornal. Todavia, vou servir-me desta
posição contrastante para abordar genericamente a difícil situação
editorial de transmitir às diferentes sensibilidades e diferenciadas
leituras interpretativas dos leitores o posicionamento de um jornal,
como do PÚBLICO, na prossecução de uma orientação "por critérios de
rigor e criatividade editorial, sem qualquer dependência de ordem
ideológica, política e económica", conforme vem inscrita no Estatuto
Editorial.
No plano teórico, ocorre-me uma ilação corrente que se
pode tirar deste circuito entre produtores de informação e receptores da
mesma. Aquela que Michel de Certau, na sua obra L" Inventation du Quotidien
(1980), já fazia: o discurso jornalístico produz e reproduz o seu
espaço, o seu contexto social, fala de e para a sua classe, seus
estratos ou camadas sociais, mas nunca anula, por completo, a capacidade
inventiva e criativa de quem lê. A liberdade interpretativa do leitor
deriva das suas competências, das suas disposições, das suas ideologias e
das representações que tem da realidade.
Sendo assim, nunca um
jornal, comprometido com a observância das regras de isenção e rigor
face ao universo plural do público a que se destina, é uno, na isenção e
rigor que consegue transmitir. Por palavras mais corriqueiras, o que se
pode dizer é que por mais isento que queira ser um jornal ou um
jornalista, estes jamais escaparão às diferentes leituras do seu
público.
Quando se aplica esta teorização ao campo do discurso
político, aumentam as dificuldades entre a aplicação por parte do jornal
e a aceitação por parte do leitor da verificação do cumprimento de um
rigoroso critério de isenção, "contratualizado" entre jornal e leitores
como resultado de um estatuto de empresa informante que promete respeito
ao pluralismo das audiências e não clara e assumida assunção política
ideológica. Como se sabe, em todos os países democráticos, vai sendo
cada vez mais comum os jornais declararem-se do lado em que estão
perante as opções políticas ou candidatos que estão no terreno da
condução governativa ou no tablado eleitoral. Não é o caso do PÚBLICO.
Por estatuto "é um jornal diário de grande informação, orientado por
critérios de rigor e criatividade editorial, sem qualquer dependência de
ordem ideológica, política e económica". Isto não quer dizer que o
jornal não cultive, na sua prática jornalística, distintos "espaços de
informação, análise, comentário e opinião". Nem tão-pouco exige que
renuncie a uma atitude crítica perante todos os poderes.
Obviamente,
os dois exemplos de apreciação antagónica que recrutei, entre o estar
"colado" ao Governo e o estar escandalosamente "contra o Governo", são
opiniões singulares que não espelham, penso eu, a opinião geral dos
leitores do PÚBLICO, mas que não deixam de ilustrar a dificuldade de ter
uma prática de jornalismo com o respeito do pluralismo
político-ideológico em democracia.
Pelas razões que invoquei, não é
minha intenção por hoje entrar na análise concreta sobre as duas
posições extremas manifestadas por estes dois leitores. Mas pelas
considerações que fiz, isso não me inibe de chamar a atenção para a
necessidade de serem respeitadas regras elementares pela aceitação da
pluralidade de opinião, quer da parte dos produtores da informação, quer
da parte dos receptores dessa informação. Caso contrário, a prática do
respeito de um convivente pluralismo democrático torna-se impraticável.
Entristece-me
a observação, porventura subjectivista, que vou fazendo da
dicotomização a que está a ser reduzido o discurso político no espaço
público, muito perto, aliás, do parâmetro vigente nas proximidades do 25
de Abril de 1974. Não se aceita um leque variado dos matizes desse
discurso. Hoje, interpreta-se, quase exclusivamente, que esse discurso
ou é pró-situacionista ou anti-situacionista. Muito por culpa dos
actores políticos e dos interventores assumidos no espaço público, mesmo
aqueles com estatuto académico ou de cientistas - o que nos prostra num
sufoco de ar democrático penoso e irrespirável, em que o pluralismo tem
dias difíceis. Talvez porque, como diz o escritor argentino Eduardo
Galeano, "estamos num mundo ao avesso à vista de todos, com a esquerda
na direita, o umbigo nas costas e a cabeça nos pés". Quando é o autarca
socialista que manda erigir a estátua do cónego Melo e o autarca do PSD
que dá lugar e corpo à estátua de Salgado Zenha, não admira o sentimento
de avesso com que vemos as coisas.
IN "PÚBLICO"
20/04/14
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