Papas e tolos
Em tempos de prosperidade, a história não passaria de um ‘fait divers’ ou de uma engenhosa estratégia de marketing. A Nestlé, que enfrenta quebras de consumo em vários produtos, viu uma das suas principais marcas de papas contrariar a tendência e aumentar as vendas em 7% no mercado português.
A explicação? Crise, diz a empresa, que leva
os portugueses a optar por uma refeição que lhes custa pouco mais de 23
cêntimos. A crise que, já em 2003, quando o país estava de "tanga",
justificou o mesmo fenómeno de consumo, como o responsável da
multinacional contou ao ‘Público' esta semana.
Só que os tempos são de
austeridade e uma história como esta pode traduzir bem mais do que uma
simples preferência de consumo: pode ser também (mais) um sinal da
mudança forçada de hábitos a que os portugueses estão obrigados. Desde
que a crise rebentou e os apuros orçamentais em que o país se descobriu
levaram à intervenção da ‘troika', os sacrifícios dos portugueses têm
crescido a um ritmo sufocante: redução de salários, perda de subsídios,
corte de benefícios, sobrecarga fiscal. Uma a uma, as medidas foram
apertando o torniquete. E ontem, com o anúncio de mais impostos, o
Governo só torceu um pouco mais o já sufocado orçamento das famílias.
Talvez por isso não se estranhe que, ao chegar ao final do mês,
muitos portugueses levem pouco mais do que um prato de papa à mesa. Uma
opção que, para muitos, deixou de ser uma preferência: tornou-se uma
emergência.
As propostas que o ministro das Finanças ontem apresentou como uma
alternativa, revista e suavizada, à anterior intenção de reduzir a Taxa
Social Única - aquela em que os trabalhadores iriam pagar mais 7% do
seu rendimento e as empresas, pelo contrário, beneficiariam de uma
redução - podem agora ser vendidas como medidas mais benéficas. Uma
espécie de papas e bolos para compensar a amargura recente dos
portugueses. Só que este país já não é para tolos. E este Governo já não
tem margem para iludir mais os portugueses.
O próximo Orçamento do
Estado, que parece insistir em atacar os bolsos das famílias com mais
taxas e sobretaxas, não pode esperar por 2014 para revelar e executar o
seu plano de combate às despesas do Estado. Não pode retirar um ou dois
salários aos trabalhadores e agravar os escalões de IRS quando, ao mesmo
tempo, chuta os próprios sacrifícios do Estado para daqui a um ou dois
anos. O teste mais duro que o Governo tem de passar já não é da
‘troika': é do país. O mesmo país que olha desconfiado para um Executivo
em que o primeiro-ministro anuncia medidas de austeridade como
inevitáveis ao lado de um invisível e (aparentemente) acomodado Paulo
Portas. Ou que suspeita do futuro de uma coligação em que Passos Coelho
dá a cara por mais impostos, enquanto os parceiros centristas exigem
coragem para cortar na despesa. Perdido nestas contradições, o Governo
arrisca-se a arruinar este Orçamento. Resta saber se não serão os planos
do Orçamento a arruinar o Executivo.
Tanto barulho para... nada?
A greve geral que a
CGTP agendou para o próximo dia 14 de Novembro tem um alvo: as medidas
de austeridade. É legítimo, há razões para o cansaço e para a revolta,
há direitos de expressão a respeitar. Um movimento assim, contudo, devia
ser consequente. Como o foi a manifestação de 14 de Outubro contra
propostas concretas do Governo que resultaram num recuo do próprio
Executivo. Parar o país quando empresas e cidadãos precisam de manter a
economia em movimento pode ser um protesto legítimo. Mas, se não
resultar em mais do que uma suspensão do país, serve exactamente para
quê?
Subdirectora
IN "DIÁRIO ECONÓMICO"
04/10/12
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