A QUOTA
DA EUROPA
A conversa com Jack Valenti e os chefes das majors foi agressiva e nada
diplomática, se é que se pode chamar conversa ao ataque frontal com que o
Presidente da MPAA se dirigiu à pequena comitiva europeia: o
comissário, Balsinha e eu.
Estávamos em 1993, a ronda de negociações
sobre o GATT chegava ao fim e só a gente do cinema, com a ajuda de
Delors e Deus Pinheiro, teimava em excluir o audiovisual dos históricos
acordos que haviam conseguido envolver 123 países!
Deus Pinheiro
lembrou que não bastava defender a liberdade do mercado mas que era
necessária regulação, medidas que protegessem os mais fracos, que
impedissem o ‘abuso de posição dominante’; numa palavra, que o mercado
devia ser ‘free and fair’. Pela minha parte – e Jack Valenti mostrava-me
um ódio indisfarçável por achar que eu era um dos cabecilhas do
movimento, um abominável ‘artista’ – limitei-me a dizer que, quisesse
ele ou não, o cinema também era uma arte; uma ‘arte popular’, sem
dúvida, mas uma arte. Perante o seu protesto (‘it’s business, not
culture’), lembrei-lhe que John Ford era um artista, como Poe ou
Melville, e que os seus filmes faziam parte da cultura americana; ou que
Do Céu Caiu Uma Estrela, por exemplo, era exibido todos os anos pelo
Natal na TV americana. E quando me falou horrorizado das ‘quotas’ de
obras europeias impostas pela directiva TV Sem Fronteiras (que, aliás,
poucos países respeitam), lembrei-lhe que a discriminação positiva era
um meio legítimo que, em determinados momentos da História, as minorias
tinham para se defender. E que os negros americanos se batiam há muito
pela sua justa integração na indústria, reclamando o aumento da sua
‘quota’ à frente e atrás das câmaras, como ele bem sabia. E naquela
altura, nós, os cineastas europeus, eramos ‘os negros da Europa’.
O
jantar acabou e o audiovisual ficou de fora dos acordos do GATT. Mas o
que eu percebi nesse dia foi a importância que tinha para os americanos a
aprovação sem reservas de um acordo que iria matar a indústria
europeia, abrir caminho a uma concorrência desleal com países que
praticavam formas de dumping social (trabalho escravo), ecológico
(níveis de poluição insustentáveis), político (desrespeito de direitos
humanos) e, portanto, económico (preços que desafiavam a concorrência e
favoreciam a deslocalização das empresas) e que, nesse dia, a Europa
social e culta que havíamos conhecido, tinha terminado. O que me espanta
é que, numa altura em que finalmente essa profecia está em vias de se
realizar, ninguém se tenha lembrado disso e de propor a renegociação do
GATT.
IN "SOL"
06/08/12
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