Enquanto dão voltas ao destino e sabendo que já estão mortalmente feridos, os deslumbrados levam o seu tempo a cair na realidade. Agarram-se às glórias de um passado, na tentativa desesperada de alimentar um presente repleto de velhos interesses. Vociferam contra Átilas imaginários externos, na esperança de mobilizar as tribos para uma guerra faz-de-conta.
Ousadia.
Eva foi a primeira a desafiar as regras, a deixar a curiosidade levar a
melhor e a trocar o conforto de um paraíso idílico pelo conhecimento. A
história bíblica desta mulher destemida foi aproveitada, ao longo dos
séculos, para fazer dela uma agente diabólica, onde todas as mulheres
estão representadas. Não interessa se essa ousadia deu origem à
humanidade e ao processo que conhecemos hoje. Não interessa refletir se a
personagem desta história mirabolante que ainda hoje tem fiéis
seguidores, foi ou não um acto de coragem, autodeterminação, livre
arbítrio. Em pleno Século XXI esta Eva bíblica paga o preço por ter
pensado pela sua própria cabeça e por ter tomado uma atitude contrária
às regras estipuladas. Tal como a mulher do livro mais vendido em todo o
mundo, temos um homem que também nos dias de hoje é um tanto ou quanto
desconsiderado quando queremos atacar alguém que é incapaz de acreditar
sem ver. Tomé e o raciocínio lógico, Tomé e a sua necessidade de ver os
factos e este é o preço a pagar por todos aqueles que, um dia, exigiram
conhecer mais do que aquilo que lhes mostravam.
Resignação. E aos
poucos deixamo-nos amestrar por uma qualquer vontade ou poder superior
que condiciona e nos tenta transformar em fantoches utilizados a seu
bel-prazer. Perdemos a voz, ignoramos as vontades, camuflamos os estados
de espírito, calamos a revolta. Tudo em prol dos interesses e
necessidades individuais que são, naturalmente compreensíveis e até
legítimos. Quem tem filhos para sustentar, dívidas para pagar, qualidade
de vida para garantir, dificilmente poderá soltar o seu grito do
Ipiranga numa sociedade constituída por tribos dominadas pelas
influências e interesses, onde quem diz o que pensa é, invariavelmente,
alguém a desconsiderar e, muito provavelmente, um alvo perfeito para as
tais vinganças feitas de rebendita. E o preço a pagar torna-se pesado.
Demasiado pesado para a consciência que idealiza que o seu hospedeiro
possa, um dia, ser alguém que deve primar pela diferença, em vez de ser
mais um corpo, cujo cérebro foi completamente dominado pela inércia
sustentada pelo medo.
Deslumbramento. Há dias, um comentador
desportivo que até já foi ministro, dizia que “ninguém sai
voluntariamente do poder”. Esse poder que deslumbra começa, na maior
parte dos casos, com uma ideia válida aceite pela maioria, mas à medida
que vai expandindo as suas teias, aumentando a sua rede de contactos,
tem a tendência para aniquilar a lucidez da inteligência dos seus
detentores. É o conforto, o domínio e aquela sensação de ser a mão que
carrega a faca e o queijo que fazem com que o poder seja, de facto,
fascinante para quem o exerce, invejado por aqueles que o ambicionam,
temido por todos os outros que têm algo a perder se ousarem
contrariá-lo. Neste deslumbramento é preciso não esquecer os herdeiros
do absolutismo. Aqueles que, a dada altura da sua existência no topo da
hierarquia, cristalizaram-se, deixaram de ver, ouvir, pensar, não
admitindo contrariedades, nem tão pouco discordâncias. Reis e senhores
sentados num trono de areia, decidem o que é a verdade, como deve ser a
realidade, quem são os bons e os maus num mundo onde não há espaço para a
dúvida ou para a crítica razoável. E o preço a pagar é o desgaste
intenso e inevitável desses poderes que a História prova que são
efémeros, pois mais tarde ou mais cedo, são decepados através de rudes
golpes mortais. Enquanto dão voltas ao destino e sabendo que já estão
mortalmente feridos, os deslumbrados levam o seu tempo a cair na
realidade. Agarram-se às glórias de um passado, na tentativa desesperada
de alimentar um presente repleto de velhos interesses. Vociferam contra
Átilas imaginários externos, na esperança de mobilizar as tribos para
uma guerra faz-de-conta.
Capacidade. Saber identificar e viver
com as nossas próprias aptidões é um exercício que exige uma boa dose de
humildade, desprendimento em relação a sentimentos extremistas, ódios e
cobiças, desejos e intolerâncias. Este profundo exame de consciência é
muitas vezes ignorado e até ridicularizado por todos os que sucumbem aos
ímpetos do fanatismo, disfarçados em supremacias construídas à
semelhança e imagem dos respetivos egos. A capacidade traz-nos clareza
mental que permite alargar horizontes, identificar e compreender
fenómenos que diariamente acontecem nas nossas vidas. É essa capacidade
que nos conduz até onde podemos ir porque todos temos os nossos limites.
Na falta dela, tornamo-nos rancorosos, invejosos, ofensivos perante
aqueles que conseguem determinado intento e outros não. As pessoas que
são efetivamente boas naquilo que fazem, porque sabem aproveitar e
desenvolver as suas capacidades, são sempre invejadas. Secretamente há
quem lhes deseje o mal maior ou menor, consoante o grau de zelotipia. O
preço a pagar pela falta de capacidade em analisar os outros,
compreender os limites, domesticar as hediondas cobiças, faz com que
sejamos indivíduos a viver numa constante e abjeta perseguição pela
sombra dos outros, desprovidos de liderança própria. E quem não consegue
ser líder de si mesmo, que legitimidade tem para querer liderar os
outros?
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
16/01/19
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