22/01/2019

SÓNIA SILVA FRANCO

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O preço a pagar

Enquanto dão voltas ao destino e sabendo que já estão mortalmente feridos, os deslumbrados levam o seu tempo a cair na realidade. Agarram-se às glórias de um passado, na tentativa desesperada de alimentar um presente repleto de velhos interesses. Vociferam contra Átilas imaginários externos, na esperança de mobilizar as tribos para uma guerra faz-de-conta.

Ousadia. Eva foi a primeira a desafiar as regras, a deixar a curiosidade levar a melhor e a trocar o conforto de um paraíso idílico pelo conhecimento. A história bíblica desta mulher destemida foi aproveitada, ao longo dos séculos, para fazer dela uma agente diabólica, onde todas as mulheres estão representadas. Não interessa se essa ousadia deu origem à humanidade e ao processo que conhecemos hoje. Não interessa refletir se a personagem desta história mirabolante que ainda hoje tem fiéis seguidores, foi ou não um acto de coragem, autodeterminação, livre arbítrio. Em pleno Século XXI esta Eva bíblica paga o preço por ter pensado pela sua própria cabeça e por ter tomado uma atitude contrária às regras estipuladas. Tal como a mulher do livro mais vendido em todo o mundo, temos um homem que também nos dias de hoje é um tanto ou quanto desconsiderado quando queremos atacar alguém que é incapaz de acreditar sem ver. Tomé e o raciocínio lógico, Tomé e a sua necessidade de ver os factos e este é o preço a pagar por todos aqueles que, um dia, exigiram conhecer mais do que aquilo que lhes mostravam.

Resignação. E aos poucos deixamo-nos amestrar por uma qualquer vontade ou poder superior que condiciona e nos tenta transformar em fantoches utilizados a seu bel-prazer. Perdemos a voz, ignoramos as vontades, camuflamos os estados de espírito, calamos a revolta. Tudo em prol dos interesses e necessidades individuais que são, naturalmente compreensíveis e até legítimos. Quem tem filhos para sustentar, dívidas para pagar, qualidade de vida para garantir, dificilmente poderá soltar o seu grito do Ipiranga numa sociedade constituída por tribos dominadas pelas influências e interesses, onde quem diz o que pensa é, invariavelmente, alguém a desconsiderar e, muito provavelmente, um alvo perfeito para as tais vinganças feitas de rebendita. E o preço a pagar torna-se pesado. Demasiado pesado para a consciência que idealiza que o seu hospedeiro possa, um dia, ser alguém que deve primar pela diferença, em vez de ser mais um corpo, cujo cérebro foi completamente dominado pela inércia sustentada pelo medo.

Deslumbramento. Há dias, um comentador desportivo que até já foi ministro, dizia que “ninguém sai voluntariamente do poder”. Esse poder que deslumbra começa, na maior parte dos casos, com uma ideia válida aceite pela maioria, mas à medida que vai expandindo as suas teias, aumentando a sua rede de contactos, tem a tendência para aniquilar a lucidez da inteligência dos seus detentores. É o conforto, o domínio e aquela sensação de ser a mão que carrega a faca e o queijo que fazem com que o poder seja, de facto, fascinante para quem o exerce, invejado por aqueles que o ambicionam, temido por todos os outros que têm algo a perder se ousarem contrariá-lo. Neste deslumbramento é preciso não esquecer os herdeiros do absolutismo. Aqueles que, a dada altura da sua existência no topo da hierarquia, cristalizaram-se, deixaram de ver, ouvir, pensar, não admitindo contrariedades, nem tão pouco discordâncias. Reis e senhores sentados num trono de areia, decidem o que é a verdade, como deve ser a realidade, quem são os bons e os maus num mundo onde não há espaço para a dúvida ou para a crítica razoável. E o preço a pagar é o desgaste intenso e inevitável desses poderes que a História prova que são efémeros, pois mais tarde ou mais cedo, são decepados através de rudes golpes mortais. Enquanto dão voltas ao destino e sabendo que já estão mortalmente feridos, os deslumbrados levam o seu tempo a cair na realidade. Agarram-se às glórias de um passado, na tentativa desesperada de alimentar um presente repleto de velhos interesses. Vociferam contra Átilas imaginários externos, na esperança de mobilizar as tribos para uma guerra faz-de-conta.

Capacidade. Saber identificar e viver com as nossas próprias aptidões é um exercício que exige uma boa dose de humildade, desprendimento em relação a sentimentos extremistas, ódios e cobiças, desejos e intolerâncias. Este profundo exame de consciência é muitas vezes ignorado e até ridicularizado por todos os que sucumbem aos ímpetos do fanatismo, disfarçados em supremacias construídas à semelhança e imagem dos respetivos egos. A capacidade traz-nos clareza mental que permite alargar horizontes, identificar e compreender fenómenos que diariamente acontecem nas nossas vidas. É essa capacidade que nos conduz até onde podemos ir porque todos temos os nossos limites. Na falta dela, tornamo-nos rancorosos, invejosos, ofensivos perante aqueles que conseguem determinado intento e outros não. As pessoas que são efetivamente boas naquilo que fazem, porque sabem aproveitar e desenvolver as suas capacidades, são sempre invejadas. Secretamente há quem lhes deseje o mal maior ou menor, consoante o grau de zelotipia. O preço a pagar pela falta de capacidade em analisar os outros, compreender os limites, domesticar as hediondas cobiças, faz com que sejamos indivíduos a viver numa constante e abjeta perseguição pela sombra dos outros, desprovidos de liderança própria. E quem não consegue ser líder de si mesmo, que legitimidade tem para querer liderar os outros?

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
16/01/19

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