05/11/2024

PEDRO AMARAL

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Uma falsa lufada
      de ar fresco

O turismo é sintoma de um sistema que até o nosso lazer manipula

Hoje confunde-se o viajante e o turista. Talvez a culpa seja de usarmos corrrentemente o verbo viajar e deixamos órfão o turista de ser conjugado. A verdade é que estas implicações me parecem bastante pertinentes de serem expliradas.

Desde logo, comecemos pelas diferenças entre essas duas atividades. Um livro pertinente de referenciar nesta matéria pode ser o “Arte de viajar” de Paul Theroux. O autor é escritor de livros de viagem e professor de literatura de viagem, elaborando aqui uma antologia de textos seus e de outros autores, bem como ensaios próprios que vão desde o desejo da viagem, à gastronomia, passando pela caminhada e pela adrenalina. Não pretendo seguir à risca o que o autor diz, até porque pretendo aqui ramificar o tema para algo que ele não trata, mas não posso deixar de aqui deixar a sugestão desta obra, uma vez abordado este assunto. Qual, então, a diferença entre o viajante e o turista? O viajante é aquele que vive, o turista o que visita - reforço que esta resposta é minha. Na viagem temos uma estadia em geral mais prolongada do que a que o turista está disposto, em que se inclui a construção de um quotidiano imanente ao quotidiano local. Na viagem vamos construindo a nossa jornada, inscrevendo no nosso percurso de vida essas vivências que vão além da pura sensação - talvez a maior marca disso seja o registo de estados mentais e raciocínios, pelo maior incerto, pelo maior número de escolhas. O turista desloca-se um fim-de-semana, uma semana, duas semanas no máximo, para um local ou locais, seguindo, muitas vezes, excursões, que têm os percursos mastigados, ou vendo as principais atrações divulgadas, comendo nos restaurantes gentrificados,... Daqui talvez fique a ideia de que vejo o turismo com uma pobreza intrínseca, o que sendo bem definido até pode ser certo, mas não faço qualquer julgamento depreciativo: por um lado, porque pode ser muito bem uma preferência pessoal, por outro, porque é para ele que somos empurrados.

Antes de continuar com este percurso, permitam-me só acrescentar às distinções que me parece que podemos colocar os dois conceitos em polos opostos, mas com um espectro, pelo que se me afigura como natural, e mais provável, que geralmente adotemos um comportamento híbrido. Imaginemos qur estamos a fazer uma escapadinha a um destino e estamos a tentar poupar ao máximo: provavelmente vamos cingirnos ao qur nos soa essencial, mas faremos os percursos o máximo possível a pé, conhecendo as realidades que estão no meio das atrações, e entraremos nos supermercados locais, vendo os hábitos (cada vez mais globalizados) dos habitantes desse local. É certo que provavelmente um destino perspetivado como cultural terá mais probabilidade de ter elementos de viagem do que um destino balnear.

Vamos retomar o nosso fio: este turismo de pacotes de viagem é o que nos aparece quando fazemos uma pesquisa na internet sobre sair do nosso local. Vendem-se pacotes que encsixam perfeitamente nas férias do trabalho (e escolares e fins-de-semana prolongados), além das próprias escapadinhas. Isto é vender a possibilidade de quebrar a rotina e “conhecer algo novo” - coloco as aspas por talvez “lavar as vistas” ser melhor expressão. Trata-se de vermos a janela temporal como uma liberdade, um escape, um momento para nós. Sentimos que isso nos pode dar novas forças. E é aqui que reside a questão: porquê? Muitas vezes se significam as viagens como recompensas. Aquilo que nos impele a tomar esta via do “pronto-a” é a asfixia em que nos sentimos todos os dias. O turismo é sintoma de um sistema que até o nosso lazer manipula.

* Natural da ilha de Santa Maria, estuda Filosofia no Porto. Membro da Comissão Coordenadora Regional dos Açores do Bloco de Esquerda.

IN "ESQUERDA"-03/11/24.

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