09/03/2020

ANA SOFIA SILVA

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Antecipação da Morte e Seguros

A delimitação das condições específicas aplicáveis depende agora da discussão na especialidade dos vários projetos de lei apresentados. Seja como for, o que importa reter é o conceito base de antecipação da morte por decisão própria.

A despenalização da antecipação da morte é um tema particularmente complexo e exigente no plano jurídico-constitucional. Sem pretender tomar posição quanto a uma matéria que reclama particular sensibilidade e seriedade intelectual, este artigo visa apenas refletir sobre a validação do pedido para morrer à luz do Direito dos Seguros, em particular da regra que exclui a cobertura em caso de suicídio ocorrido até um ano após a celebração do contrato.

Antes de mais, importa referir que o que foi aprovado, na generalidade, na Assembleia da República foi a despenalização da antecipação da morte por decisão da vítima, quando levada a cabo por profissionais de saúde e na medida em que se encontrem verificadas determinadas condições legalmente previstas. Ou seja, no plano estritamente jurídico, a despenalização do homicídio a pedido da vítima (quando a concretização das medidas para a morte são executadas pelo profissional de saúde a pedido da pessoa doente ou eutanásia stricto sensu) e do suicídio assistido (quando o profissional de saúde se limita a disponibilizar os meios, sendo a morte concretizada pelo próprio doente).

A delimitação das condições específicas aplicáveis depende agora da discussão na especialidade dos vários projetos de lei apresentados. Seja como for, o que importa reter é o conceito base de antecipação da morte por decisão própria.

A norma do Direito dos Seguros referida a propósito do suicídio tem como fundamento o mesmo imperativo de ordem pública que justifica a exclusão dos atos dolosos, i.e. a prevenção da fraude e do próprio suicídio, ou, dito de outro modo, impedir a celebração de um contrato de seguro na iminência de suicídio. Já a delimitação temporal legalmente imposta visa não onerar desproporcionadamente os beneficiários da apólice, atingidos pela dor da perda da pessoa segura. Finalmente, sublinha-se o facto de as partes poderem convencionar em sentido diverso, diminuindo ou aumentado o prazo de exclusão de cobertura ou mesmo eliminando esta exclusão.

Atento o exposto, será legítimo considerar que a despenalização da antecipação da morte tem um impacto imediato na norma seguradora acima identificada, afastando-a?

Penso que não. Penso que, tal como no suicídio stricto sensu, nos dois casos objeto de despenalização estamos, de um ponto de vista conceptual, no mesmo plano – o da antecipação da morte decidida de forma voluntária pelo próprio -, devendo, nessa medida, aplicar-se às três hipóteses a mesma solução legal. Tal não significa, porém, que não devam ser ponderadas, caso a caso, exceções à aplicação de tal exclusão. Como causa de exclusão, nas hipóteses ora despenalizadas, teremos, por exemplo, a circunstância de o contrato de seguro ter sido contratado de boa fé, num contexto de vida completamente distinto (e jamais indicativo) daquele que veio a determinar a antecipação da morte, não obstante a mesma se ter verificado antes de ter decorrido o referido prazo de um ano a contar da data da celebração do contrato.

* Advogada associada sénior da Cuatrecasas

IN "O JORNAL ECONÓMICO"
06/03/20

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