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IN "PÚBLICO"
19/10/19
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A coragem de ser gaga
Joacine fazia parte de um pequeno grupo que não dizia “ámen” a tudo o que eu proferia.
Cinco dias de ausência e quando chego a casa sou atropelada:
— Ó mãe, como é que nunca nos disseste que a Joacine é gaga?
— Como é que vocês sabem?
— Esteve no Ricardo.
“No Ricardo” é o programa Gente Que não
Sabe Estar, por onde passaram tantos candidatos e políticos nos últimos
tempos para conversar com Ricardo Araújo Pereira, na TVI.
— Que engraçado! A Joacine e o Ricardo nem sabem que já se tinham cruzado antes na vida, foi no nosso casamento... Sabiam que o padre Tolentino vai ser ordenado cardeal?
— Ó mãe, isso agora não interessa nada! Como é que nunca nos disseste que é gaga?
A pergunta intriga-me. O que lhes terei dito sobre a então candidata do Livre, hoje deputada eleita à Assembleia da República?
Conheci-a há mais de 20 anos, era ela adolescente e dei-lhe catequese.
Quando a vi nos cartazes, comentei-o com os meus filhos e disse-lhes que
então Joacine tinha longas tranças e que já era alta e bonita como é
agora. Mantém os mesmos olhos curiosos, mas também desafiadores.
Ser cristão não é fácil e assimilar algumas “verdades religiosas”
também não, sobretudo quando se é adolescente, quando se quer saber tudo
e Joacine fazia parte de um pequeno grupo que não dizia “ámen” a tudo o
que eu proferia. Então, sentada na última fila, olhava-me com um ar
sério e perguntava. Sim, gaguejava. Sim, ao princípio, havia um ou outro
que esboçava um sorriso, mas a verdade é que todos a respeitavam,
porque ela era frontal e a gaguez nunca a impediu de intervir. Nem
sempre ficava convencida com a resposta que o Evangelho, o Catecismo ou a
Igreja davam e isso sempre me deu uma certa alegria, porque é tão
importante sermos desafiados e confirmarmos, assim, a nossa fé.
São estas memórias que recapitulo frente aos meus filhos, ainda mal pousei a mala de viagem.
– Mas por que é que nunca disseste que é gaga? — insistem.
– Porque não é importante. O que é que queriam que vos dissesse: “A Joacine é uma jovem guineense gaga”? É isso que caracteriza uma pessoa, faz assim tanta diferença? — digo, começando a ficar exasperada.
— Faz, quando essa pessoa está a candidatar-se ao Parlamento — respondem-me de imediato.
— Disse-vos o que era importante: era uma miúda inteligente e perguntadora. Não é isso que importa?
Durante as semanas seguintes debatemos a importância de todos — à boa maneira bíblica: cegos, surdos e paralíticos — estarem representados na polis, gagos incluídos. Se o Parlamento se adaptou às cadeiras de rodas, por que não há-de adaptar-se a quem gagueja?
Está-se assim a abrir um precedente tão grande? O que é mais
importante, a gaguez ou o pensamento?, insiste o pai.
Respondem-nos que a
retórica é importante na ágora.
— O que diferencia o Churchill, o Obama ou o Costa? Não são os seus discursos? — insistem.
— Diz que o Aristóteles era gago... — respondo.
— Não havia rádio nem televisão... — exclamam.
— E o pai de Isabel II... — atalho.
—
Não havia redes sociais e essas são horríveis, destroem uma pessoa. Não
percebo como é que o partido achou boa ideia escolher a Joacine para
cabeça de lista. Não sabiam que ia ser trucidada pelas redes sociais? —
comentam.
Num destes dias, ao jantar, comentamos os memes, gifs
e quejandos que nos passam pelos olhos. Para onde vai a humanidade? O
silêncio é quebrado com a informação de que há uma petição para impedir a
tomada de posse de Joacine Katar Moreira e que já tem mais de 17 mil
assinaturas. Não é porque é gaga, mas por alegada falta de patriotismo.
Não tem fundamento jurídico, digo.
— É uma grande falta de respeito para com ela e para com quem votou nela — reagem, zangados.
Quem votou sabia que Joacine é gaga e este é também um statement político,
diz o pai. Eles torcem o nariz. Abominam os ataques a que está a ser
sujeita, mas não têm a certeza de que tenha sido boa ideia ser a cabeça
de lista do Livre. Sinto pena, confesso, e pergunto-me como tem coragem
para se sujeitar aos ataques. Onde vai buscar a sua força?
É essa
a pergunta que faço a Joacine, numa troca de mensagens. “Penso sempre
que não é sobre mim, mas sobre aquilo que represento.” E é ela que me
descansa: “Bárbara, [deixa-me] dizer-te, para reduzir a agonia, que
também não ando cem metros sem receber abraços e palavras de afecto.”
Que bom, Joacine.
IN "PÚBLICO"
19/10/19
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