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IN "VISÃO"
22/03/19
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Jerónimo,
o democrata relutante
O que será preciso mais para o PCP reconhecer que a Coreia do Norte é uma ditadura belicista e autoritária? Homicídios públicos? Calma, também há: o meio-irmão do dirigente norte-coreano Kim Jong-un, crítico do regime, foi mandado assassinar na Malásia
Vamos ao bê-a-bá da ciência política. Pelo menos, desde a Grécia
Antiga, século 5 a.C. que o conceito de democracia está definido:
trata-se de um regime em que a soberania vem do povo e é exercida por
ele. Aprende-se na escola que da contração das palavras demos (povo) +
kratos (poder) se chega ao conceito básico de um regime em que o poder é
exercido através do sufrágio. O conceito evoluiu ao longo dos tempos,
com os séculos XIX e XX a acrescentarem a dimensão universal ao voto:
todos os homens e mulheres têm o direito de participar nesta escolha. A
ideia de democracia passou a incluir conceitos que lhe são hoje
essenciais, e que a Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas
ajudou a resumir: respeito pelos direitos humanos e liberdades
fundamentais, liberdade de expressão, acesso ao poder de acordo com o
Estado de Direito, realização de eleições livres e periódicas por
sufrágio universal e voto secreto, um sistema pluralista de partidos e
organizações políticas, separação de poderes, independência da Justiça,
transparência e responsabilidade da Administração Pública, meios de
comunicação social livres, independentes e pluralistas. Conceitos que
são universalmente aceites e definidos à luz nas Nações Unidas, da União
Europeia e, já agora, da Constituição Portuguesa.
Vem
este relambório a propósito da declaração de Jerónimo de Sousa sobre a
Coreia do Norte, que espelha a posição inconcebível do Partido Comunista
Português em relação a valores fundamentais. Perante a pergunta sobre
se a Coreia do Norte é ou não uma democracia, Jerónimo de Sousa
respondeu ao site Polígrafo que “é uma opinião”. “O que é a democracia? Primeiro tínhamos de discutir o que é a democracia”, continuou, em puro delirium tremens,
o líder comunista, recusando-se a classificar o regime comunista de
Pyongyang como aquilo que é verdadeiramente: uma ditadura, e das mais
opressivas do planeta.
Não é caso único no PCP: ainda em 2003, o então líder parlamentar
Bernardino Soares também conseguiu dizer que tinha “dúvidas de que a
Coreia do Norte não seja uma democracia”. Em 2017, uma delegação da
Coreia do Norte subiu ao palco na Festa do Avante, onde foi saudada, e o
jornal do partido escrevia que “é necessário romper a densíssima
cortina de fumo que caiu sobre a verdade histórica e combater a campanha
maniqueísta que sistematicamente diaboliza e caricatura a República
Popular Democrática da Coreia”. Mais recentemente, em junho do ano
passado, António Filipe, vice-presidente da bancada do PCP, fugiu numa
entrevista a sucessivas questões sobre se Kim Jong-un era um ditador,
dizendo que “há muitos critérios para aferir aquilo que são a validade
das respostas e o carácter mais ou menos positivo da ação política de
cada um que não se compadece com situações de preto e branco ou de
rótulos”. Violinos, portanto.
Para
assentar ideias, talvez seja bom recordar aos dirigentes comunistas os
relatórios das Nações Unidas que atestam as listas infindáveis de crimes
contra a Humanidade naquele país: campos de prisioneiros, sequestros,
assassínios, prisões arbitrárias, discriminação, violações da liberdade
de expressão e de movimento, escravidão, tortura, doutrinação. E depois
há os detalhes de quase tragicomédia, como o dia em que é proibido
sorrir (8 de julho, que marca a morte de Kim Il-sung) ou as eleições com
resultados de 100% dos votos e sem abstenção (em que o povo tem de
escolher sim ou não à lista única, sendo um não uma perigosa traição). O
que será preciso mais para o PCP reconhecer que a Coreia do Norte é uma
ditadura belicista e autoritária? Homicídios públicos? Calma, também
há: o meio-irmão do dirigente norte-coreano Kim Jong-un, crítico do
regime, foi mandado assassinar na Malásia.
A cegueira ideológica
de um partido toldado por dogmas anacrónicos e que ficou sem
referências históricas não se fica pela Coreia do Norte, claro está. A
posição do PCP sobre a Venezuela e a Síria é sintomática de uma total
ausência de noção sobre o que são os valores democráticos fundamentais,
em 2019 como há várias décadas: apoia publica e ostensivamente o Governo
de Nicolás Maduro e condenou recentemente o Governo pelo reconhecimento
de Guaidó, da mesma forma que em 2017 votou contra os votos de
condenação aos bombardeamentos das populações no enclave de Ghouta e aos
ataques com armas químicas levados a cabo na Síria pelo regime de
Bashar al-Assad. De repente, faz lembrar uma das muitas frases
atribuídas a Karl Marx: “Os olhos que só veem a mentira quando percebem a
verdade cegam.” Ou, como se diria por cá, o pior cego é aquele que não
quer ver...
IN "VISÃO"
22/03/19
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