ESTA SEMANA NO
"DINHEIRO VIVO"
Portugal em conserva:
Como a indústria se reinventou
e virou para fora
Uma das indústrias nacionais mais antigas precisou de conquistar o
mercado internacional para que os portugueses lhe dessem valor. Os
resultados são visíveis: só no ano passado, a produção nacional de
conservas cresceu 19% em quantidade e o consumo interno aumentou. O
sector emprega agora mais de 3500 pessoas.
As cadeiras
estão alinhadas com as mesas de inox. Tão alinhadas, que a única coisa
que salta à vista na fábrica conserveira da Pinhais & Cia.,
inaugurada em 1920, são os padrões diferentes que forram as almofadas
das cadeiras, à espera de serem novamente ocupadas. É junho. E, em
junho, as cerca de cem trabalhadoras da Pinhais já sabem que são
dispensadas do trabalho.
O preço da sardinha (normalmente, o cabaz de
22,5 kg custa entre 20 e 30 euros, mas no mês dos Santos Populares chega
a atingir os 500 euros) é a desculpa ideal para fazer pequenas
reparações na fábrica histórica de Matosinhos, a mais antiga conserveira
portuguesa que ainda funciona com os métodos artesanais, que fatura 3,5
milhões de euros/ano e exporta 90% da produção.
A
Pinhais é uma das 152 fábricas de conservas de peixe que existiam em
Portugal em 1938 e que produziam 34 mil toneladas de conservas de peixe
anualmente. A concorrência reduziu-se drasticamente para as 21 fábricas
atuais, que produzem cerca de de 80 mil toneladas de conservas de peixe,
das quais 52 mil são para exportação. Matosinhos era o maior polo da
altura, com 54 fábricas a trabalhar nos anos 30. Agora, apenas quatro
continuam a produzir conservas. A Pinhais é uma delas.
"A
sardinha vem, tira-se-lhe a cabeça e as tripas à mão. Vai para a
salmoura, segunda etapa. É engrelhada, a grelha é passada por água para
tirar a salmoura, põe-se no carro e vai cozer. Deixa-se arrefecer, a
trabalhadora corta e põe a sardinha dentro da lata, e depois deita o
azeite. A lata é cravada, lavada, esterilizada, só depois é que vai para
o armazém. São muito mais fases no processo produtivo artesanal do que
no industrial, por isso os que escolhem o segundo método produzem muito
mais. Só que a qualidade...", diz António Pinhal, neto do fundador e
administrador da empresa.
Além de um processo de produção
diferente, o método tradicional tem outra particularidade: a
matéria-prima. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), em
2013, as capturas de peixe pela frota nacional caíram 1,2% para 195 065
toneladas, apesar de um aumento de 2,3% nas capturas em pesqueiros
estrangeiros. O pescado fresco e refrigerado transacionado em lota
diminuiu pelo terceiro ano consecutivo, para as 144 654 toneladas (-4,4%
face a 2012), o que corresponde ao volume mais baixo dos últimos sete
anos, sobretudo devido à quebra das capturas de sardinha, no Continente,
e de atum, na Madeira, bem como de espécies como o carapau, a cavala e o
polvo. Na Pinhal, a sardinha usada na produção artesanal é sempre
fresca, daí a fábrica parar quando o preço está mais alto - a faturação
está muito dependente da disponibilidade de peixe.
"Tem que se
notar a diferença, e nota-se. Porquê? A sardinha fresca é fresca. É como
em nossa casa. Se cozem as sardinhas dentro da lata, a humidade e a
gordura da própria sardinha ficam enlatadas. Se o peixe é posto na
grelha e deixa escorrer a gordura, o azeite da lata é amarelo, não é
castanho. Por isso, o nosso maior desafio é a qualidade, a nossa aposta
desde sempre", refere António Pinhal, neto do fundador, enquanto olha em
baixo a fábrica que administra, a partir da janela que tem no
escritório da Pinhais & Cia.
Resta quase tudo da fábrica
fundada por António Pinhal avô. O chão coberto de ladrilho hidráulico, o
balcão de madeira que ainda serve de loja da fábrica para quem passa em
Matosinhos, a escada de madeira polida que brilha como nova e até o
altar a Nossa Senhora, de frente para quem trabalha sardinhas todo o
dia, mantêm-se intocados. Tal como os processos. "Somos a única fábrica
que trabalha só com o método tradicional: só sardinha fresca portuguesa.
Desde 1920 até aos dias de hoje, o processo tradicional tem sido a
nossa aposta", sublinha. Fundada pelo avô de António Pinhal, com o mesmo
nome, a fábrica foi sempre administrada pela família. Depois do
fundador, António Pinhal filho trabalhou 70 anos na fábrica onde o atual
administrador trabalha há três décadas. O legado deverá ficar para o
filho, também António, na empresa há sete anos.
"É uma geração,
uma empresa familiar. Foram-me ensinando a maneira como a pessoa devia
fazer conservas usando o método tradicional português." A história
trouxe experiência e, garante, clientes tão antigos como uma loja
gourmet austríaca, que trabalha com a Pinhais há 90 anos. "A empresa
exporta 90%. No mercado nacional só vendemos para lojas gourmet. Não
entramos em grandes superfícies porque não produzimos marcas para
grandes superfícies - por duas razões fundamentais: querem quantidade e
exigem preços muito baixos. Não conseguimos assegurar as duas coisas",
esclarece.
Há dois anos, A Poveira estava na mesma situação. A
empresa da Póvoa do Varzim, que produz e comercializa marcas próprias
como a Minerva, a Galleon, a Alva ou a Capitão Poveiro, não tinha
capacidade para aumentar a produção na fábrica em frente à lota da
Póvoa, construída em 1938, ano da fundação da empresa. Com um
investimento de 5,5 milhões de euros, os cerca de 140 trabalhadores
mudaram-se para a nova fábrica em janeiro de 2013. A mudança vai
permitir quadruplicar o volume de negócios até 2018, muito graças à nova
aposta da empresa: a produção de atum em conserva.
A Poveira
tem capacidade para produzir entre 80 e 100 mil latas de atum em
conserva diariamente, um número que o administrador, António Cunha,
espera que contribua para diminuir as 18 mil toneladas de atum
importadas por Portugal todos os anos (sobretudo de Espanha), qualquer
coisa como o equivalente a 160 milhões de latas.
Em Portugal, o
consumo de conservas de peixe em super e hipermercados aumentou de quase
144 milhões de latas em 2013 para os atuais mais de 150 milhões, de
acordo com dados anuais da AC Nielsen. No entanto, as conservas de atum
continuam a ocupar um lugar de destaque com 86% da quota de mercado, em
comparação com apenas 8% de sardinhas. "Temos apostado no mercado
interno precisamente por causa do atum. Tínhamos boas parcerias e, a
partir do momento em que começámos a produzir atum, essa decisão
permitiu que crescêssemos muito. Ao mesmo tempo, existia uma cultura
comercial na empresa que não estava virada para o mercado nacional: se
viessem bater à porta, vendíamos, mas não íamos à procura", explica
António Cunha.
A nova fábrica trouxe, além de um aumento de
produção, a possibilidade de A Poveira continuar a produzir sardinha e
cavala segundo o processo artesanal, que implica uma pré-cozedura do
peixe antes de ser enlatado e colocado em molho. Cerca de 20% da
produção total da fábrica é vendida sob a marca Minerva, bandeira da
empresa, que comercializa nove marcas e cerca de 50 referências
diferentes. "A nossa estratégia comercial é continuar a apostar na
qualidade - somos conhecidos por isso - e a inovar, ao mesmo tempo que
exploramos a produção em quantidade e a preços competitivos, porque
sabemos que é um mercado em crescimento."
A Poveira tem agora
como maiores clientes as redes de distribuição Sonae (Continente) e
Jerónimo Martins (Pingo Doce). "As grandes superfícies têm uma grande
fatia de mercado e têm as marcas próprias, que têm crescido todos os
anos. Aliás, o aumento no consumo de conservas [a produção nacional
cresceu quase 19% no último ano, segundo dados da Direção-Geral de
Recursos Marítimos] tem dois motivos essenciais: primeiro, a crise,
depois, o aumento da qualidade. As pessoas têm ganho confiança na
conserva portuguesa e se, por um lado, todas as instituições nos obrigam
a cumprir uma série de normas, a realidade é que no final do dia todos
estamos a produzir com mais qualidade. Há anos, se pudéssemos entrar em
fábricas de conservas, a maioria produzia com pouca qualidade. A
sardinha era trabalhada sob qualquer condição física. Hoje não é assim.
Depois, se falarmos de atum ou mesmo de sardinha, podemos comprar uma
lata por 60 ou 70 cêntimos. Com duas batatas temos uma refeição ótima e
muito barata", explica António Cunha.
Em 2013, as vendas
internacionais de conservas de peixe conseguiram estar entre os três
produtos agrícolas e alimentares mais exportados em Portugal. Nunca, nos
últimos cinco anos, a indústria contribuiu tanto para as exportações
totais do setor: passou de 3,24% em 2009 a representar 4,03% em 2013. Um
ano antes, Portugal subia de oitavo para quatro maior exportador
mundial deste tipo de produtos. Só em 2013, as vendas internacionais
ultrapassaram os 206 milhões de euros, uma subida de 15,6% face ao ano
anterior.
Portugal exporta conservas de peixe para cerca de 70
países em todo o mundo e, em dez anos, mais do que duplicou a
exportação. "Este crescimento tem que ver com a maior diversidade de
produtos e, ao mesmo tempo, com o aumento da procura. Começou a aparecer
internacionalmente o interesse de chefs e de consumidores gourmet pelas
conservas portuguesas", detalha Sérgio Real, presidente da Associação
Nacional dos Industriais de Conservas de Peixe. Entre os mercados
importadores mais importantes destacam-se os Estados Unidos, a Áustria, a
Suíça e a Espanha.
Apesar de a produção ter aumentado em
inovação, com a introdução de novos produtos e a conjugação de métodos
de produção tradicional e industrial, Portugal continua a ser um cliente
fraco de si próprio. Cerca de 65% das 80 mil toneladas de peixe em
conserva produzidas anualmente em Portugal são para exportação, ao mesmo
tempo que se importam 18 mil toneladas de atum/ano. A aposta, acredita
António Cunha, seguirá as duas tendências de consumo essenciais: "Por um
lado, produzir com qualidade premium e, por outro, ter produtos a preço
baixo, para competir com os restantes mercados. Tudo o que está a meio é
perigoso." A aposta já deu frutos: os filetes de cavala em azeite
picante com pickles d"A Poveira ganharam duas estrelas douradas nos iTQi
Superior Taste Awards, único selo de qualidade em sabor concedido por
líderes de opinião, chefs e sommeliers com estrelas Michelin, depois de
uma prova cega.
* Temos um enorme prazer quando comemos conservas portuguesas, já há muitos anos. Gostaríamos que os mestres da cozinha concebessem pratos nos restaurantes onde trabalham com base nas nossas conservas.
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