20/07/2014

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ESTA SEMANA NO
"DINHEIRO VIVO"

Portugal em conserva: 
Como a indústria se reinventou
 e virou para fora

Uma das indústrias nacionais mais antigas precisou de conquistar o mercado internacional para que os portugueses lhe dessem valor. Os resultados são visíveis: só no ano passado, a produção nacional de conservas cresceu 19% em quantidade e o consumo interno aumentou. O sector emprega agora mais de 3500 pessoas.

As cadeiras estão alinhadas com as mesas de inox. Tão alinhadas, que a única coisa que salta à vista na fábrica conserveira da Pinhais & Cia., inaugurada em 1920, são os padrões diferentes que forram as almofadas das cadeiras, à espera de serem novamente ocupadas. É junho. E, em junho, as cerca de cem trabalhadoras da Pinhais já sabem que são dispensadas do trabalho. 

O preço da sardinha (normalmente, o cabaz de 22,5 kg custa entre 20 e 30 euros, mas no mês dos Santos Populares chega a atingir os 500 euros) é a desculpa ideal para fazer pequenas reparações na fábrica histórica de Matosinhos, a mais antiga conserveira portuguesa que ainda funciona com os métodos artesanais, que fatura 3,5 milhões de euros/ano e exporta 90% da produção.

A Pinhais é uma das 152 fábricas de conservas de peixe que existiam em Portugal em 1938 e que produziam 34 mil toneladas de conservas de peixe anualmente. A concorrência reduziu-se drasticamente para as 21 fábricas atuais, que produzem cerca de de 80 mil toneladas de conservas de peixe, das quais 52 mil são para exportação. Matosinhos era o maior polo da altura, com 54 fábricas a trabalhar nos anos 30. Agora, apenas quatro continuam a produzir conservas. A Pinhais é uma delas.

"A sardinha vem, tira-se-lhe a cabeça e as tripas à mão. Vai para a salmoura, segunda etapa. É engrelhada, a grelha é passada por água para tirar a salmoura, põe-se no carro e vai cozer. Deixa-se arrefecer, a trabalhadora corta e põe a sardinha dentro da lata, e depois deita o azeite. A lata é cravada, lavada, esterilizada, só depois é que vai para o armazém. São muito mais fases no processo produtivo artesanal do que no industrial, por isso os que escolhem o segundo método produzem muito mais. Só que a qualidade...", diz António Pinhal, neto do fundador e administrador da empresa.

Além de um processo de produção diferente, o método tradicional tem outra particularidade: a matéria-prima. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2013, as capturas de peixe pela frota nacional caíram 1,2% para 195 065 toneladas, apesar de um aumento de 2,3% nas capturas em pesqueiros estrangeiros. O pescado fresco e refrigerado transacionado em lota diminuiu pelo terceiro ano consecutivo, para as 144 654 toneladas (-4,4% face a 2012), o que corresponde ao volume mais baixo dos últimos sete anos, sobretudo devido à quebra das capturas de sardinha, no Continente, e de atum, na Madeira, bem como de espécies como o carapau, a cavala e o polvo. Na Pinhal, a sardinha usada na produção artesanal é sempre fresca, daí a fábrica parar quando o preço está mais alto - a faturação está muito dependente da disponibilidade de peixe.

"Tem que se notar a diferença, e nota-se. Porquê? A sardinha fresca é fresca. É como em nossa casa. Se cozem as sardinhas dentro da lata, a humidade e a gordura da própria sardinha ficam enlatadas. Se o peixe é posto na grelha e deixa escorrer a gordura, o azeite da lata é amarelo, não é castanho. Por isso, o nosso maior desafio é a qualidade, a nossa aposta desde sempre", refere António Pinhal, neto do fundador, enquanto olha em baixo a fábrica que administra, a partir da janela que tem no escritório da Pinhais & Cia.

Resta quase tudo da fábrica fundada por António Pinhal avô. O chão coberto de ladrilho hidráulico, o balcão de madeira que ainda serve de loja da fábrica para quem passa em Matosinhos, a escada de madeira polida que brilha como nova e até o altar a Nossa Senhora, de frente para quem trabalha sardinhas todo o dia, mantêm-se intocados. Tal como os processos. "Somos a única fábrica que trabalha só com o método tradicional: só sardinha fresca portuguesa. Desde 1920 até aos dias de hoje, o processo tradicional tem sido a nossa aposta", sublinha. Fundada pelo avô de António Pinhal, com o mesmo nome, a fábrica foi sempre administrada pela família. Depois do fundador, António Pinhal filho trabalhou 70 anos na fábrica onde o atual administrador trabalha há três décadas. O legado deverá ficar para o filho, também António, na empresa há sete anos.

"É uma geração, uma empresa familiar. Foram-me ensinando a maneira como a pessoa devia fazer conservas usando o método tradicional português." A história trouxe experiência e, garante, clientes tão antigos como uma loja gourmet austríaca, que trabalha com a Pinhais há 90 anos. "A empresa exporta 90%. No mercado nacional só vendemos para lojas gourmet. Não entramos em grandes superfícies porque não produzimos marcas para grandes superfícies - por duas razões fundamentais: querem quantidade e exigem preços muito baixos. Não conseguimos assegurar as duas coisas", esclarece.

Há dois anos, A Poveira estava na mesma situação. A empresa da Póvoa do Varzim, que produz e comercializa marcas próprias como a Minerva, a Galleon, a Alva ou a Capitão Poveiro, não tinha capacidade para aumentar a produção na fábrica em frente à lota da Póvoa, construída em 1938, ano da fundação da empresa. Com um investimento de 5,5 milhões de euros, os cerca de 140 trabalhadores mudaram-se para a nova fábrica em janeiro de 2013. A mudança vai permitir quadruplicar o volume de negócios até 2018, muito graças à nova aposta da empresa: a produção de atum em conserva.

A Poveira tem capacidade para produzir entre 80 e 100 mil latas de atum em conserva diariamente, um número que o administrador, António Cunha, espera que contribua para diminuir as 18 mil toneladas de atum importadas por Portugal todos os anos (sobretudo de Espanha), qualquer coisa como o equivalente a 160 milhões de latas.

Em Portugal, o consumo de conservas de peixe em super e hipermercados aumentou de quase 144 milhões de latas em 2013 para os atuais mais de 150 milhões, de acordo com dados anuais da AC Nielsen. No entanto, as conservas de atum continuam a ocupar um lugar de destaque com 86% da quota de mercado, em comparação com apenas 8% de sardinhas. "Temos apostado no mercado interno precisamente por causa do atum. Tínhamos boas parcerias e, a partir do momento em que começámos a produzir atum, essa decisão permitiu que crescêssemos muito. Ao mesmo tempo, existia uma cultura comercial na empresa que não estava virada para o mercado nacional: se viessem bater à porta, vendíamos, mas não íamos à procura", explica António Cunha.

A nova fábrica trouxe, além de um aumento de produção, a possibilidade de A Poveira continuar a produzir sardinha e cavala segundo o processo artesanal, que implica uma pré-cozedura do peixe antes de ser enlatado e colocado em molho. Cerca de 20% da produção total da fábrica é vendida sob a marca Minerva, bandeira da empresa, que comercializa nove marcas e cerca de 50 referências diferentes. "A nossa estratégia comercial é continuar a apostar na qualidade - somos conhecidos por isso - e a inovar, ao mesmo tempo que exploramos a produção em quantidade e a preços competitivos, porque sabemos que é um mercado em crescimento."

A Poveira tem agora como maiores clientes as redes de distribuição Sonae (Continente) e Jerónimo Martins (Pingo Doce). "As grandes superfícies têm uma grande fatia de mercado e têm as marcas próprias, que têm crescido todos os anos. Aliás, o aumento no consumo de conservas [a produção nacional cresceu quase 19% no último ano, segundo dados da Direção-Geral de Recursos Marítimos] tem dois motivos essenciais: primeiro, a crise, depois, o aumento da qualidade. As pessoas têm ganho confiança na conserva portuguesa e se, por um lado, todas as instituições nos obrigam a cumprir uma série de normas, a realidade é que no final do dia todos estamos a produzir com mais qualidade. Há anos, se pudéssemos entrar em fábricas de conservas, a maioria produzia com pouca qualidade. A sardinha era trabalhada sob qualquer condição física. Hoje não é assim. Depois, se falarmos de atum ou mesmo de sardinha, podemos comprar uma lata por 60 ou 70 cêntimos. Com duas batatas temos uma refeição ótima e muito barata", explica António Cunha.

Em 2013, as vendas internacionais de conservas de peixe conseguiram estar entre os três produtos agrícolas e alimentares mais exportados em Portugal. Nunca, nos últimos cinco anos, a indústria contribuiu tanto para as exportações totais do setor: passou de 3,24% em 2009 a representar 4,03% em 2013. Um ano antes, Portugal subia de oitavo para quatro maior exportador mundial deste tipo de produtos. Só em 2013, as vendas internacionais ultrapassaram os 206 milhões de euros, uma subida de 15,6% face ao ano anterior.

Portugal exporta conservas de peixe para cerca de 70 países em todo o mundo e, em dez anos, mais do que duplicou a exportação. "Este crescimento tem que ver com a maior diversidade de produtos e, ao mesmo tempo, com o aumento da procura. Começou a aparecer internacionalmente o interesse de chefs e de consumidores gourmet pelas conservas portuguesas", detalha Sérgio Real, presidente da Associação Nacional dos Industriais de Conservas de Peixe. Entre os mercados importadores mais importantes destacam-se os Estados Unidos, a Áustria, a Suíça e a Espanha.

Apesar de a produção ter aumentado em inovação, com a introdução de novos produtos e a conjugação de métodos de produção tradicional e industrial, Portugal continua a ser um cliente fraco de si próprio. Cerca de 65% das 80 mil toneladas de peixe em conserva produzidas anualmente em Portugal são para exportação, ao mesmo tempo que se importam 18 mil toneladas de atum/ano. A aposta, acredita António Cunha, seguirá as duas tendências de consumo essenciais: "Por um lado, produzir com qualidade premium e, por outro, ter produtos a preço baixo, para competir com os restantes mercados. Tudo o que está a meio é perigoso." A aposta já deu frutos: os filetes de cavala em azeite picante com pickles d"A Poveira ganharam duas estrelas douradas nos iTQi Superior Taste Awards, único selo de qualidade em sabor concedido por líderes de opinião, chefs e sommeliers com estrelas Michelin, depois de uma prova cega.

* Temos um enorme prazer quando comemos conservas portuguesas, já há muitos anos. Gostaríamos que os mestres da cozinha concebessem pratos nos restaurantes onde trabalham com base nas nossas conservas.

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