Quando César quer ser Deus
O que se passa neste momento no Egipto é decisivo. Depois da eleição,
em Junho deste ano, de Muhammad Morsi para presidente do Egipto,
parecia abrir-se um novo ciclo em que o poder se estabilizava (e
concentrava) nas mãos da Irmandade Muçulmana.
O mesmo deve ter pensado o próprio presidente eleito
ao outorgar-se poderes que o colocam acima da lei nesta “fase
excepcional” que o país atravessa.
No entanto, os egípcios sabem o
que significam as fases excepcionais: viveram-nas durante 30 anos sob
Mubarak e, para a ala que em nome da liberdade e da justiça social
desencadeou a revolta no país, a decisão de Morsi evoca de novo o
espectro autocrático. Assim, após uma fase de relativo apagamento, os
mesmos que desencadearam o movimento, invadem de novo as ruas, dispostos
a não deixar “roubar a revolução”. É um alerta significativo para a
região, porque apesar da “Primavera Árabe” ter começado na Tunísia será
muito provavelmente no Egipto que ela terá o seu desfecho.
Elaborado
à pressa por uma assembleia constituinte totalmente composta por
adeptos da Irmandade Muçulmana e salafistas, (depois da demissão em
protesto de um terço dos deputados) o projecto constitucional mantém os
“princípios da Sharia como fonte principal da legislação”, em
conformidade com a antiga Constituição. Mas acrescenta uma nova
disposição, segundo a qual esses princípios deverão ser interpretados à
luz da doutrina sunita, permitindo uma leitura mais rigorista da lei
islâmica. Tem uma formulação ambígua relativamente à protecção dos
direitos dos cidadãos, condicionada “à verdadeira natureza da família” e
“à ordem pública e moral”, proíbe os “insultos à pessoa individual” e
os “insultos ao profeta”, o que abre a porta à censura, “reconhece as
religiões do Livro”, mas exclui as outras, em particular os Bahai… Em
relação às mulheres, o texto contempla a igualdade de todos os cidadãos
perante a lei, lembrando no entanto o papel do Estado na salvaguarda do
“equilíbrio entre as obrigações da mulher no quadro familiar e o seu
trabalho público”… É contra esta versão constitucional considerada
demasiado religiosa e perigosa para as liberdades que se ergue uma
oposição que inclui laicos, cristãos e muçulmanos, mulheres e homens,
pessoas do povo e da burguesia.
Na verdade, há duas questões
determinantes na modernização de um país, seja qual for a forma que
tomar: a situação das mulheres e a separação da esfera política da
religiosa. E são essas duas questões que estão no cerne da chamada
“Primavera Árabe”. Porque não há democracia, nem liberdade sem se
caminhar nesse sentido. Não se trata de mudar a cultura de um país. No
mundo árabe, a cultura dominante é a cultura islâmica, tal como em
Israel é a cultura judaica ou no ocidente europeu e transatlântico, a
cultura cristã. Mas uma leitura desses princípios que subalternize e
contrarie a importância decisiva do papel da mulher, não apenas entre as
quatro paredes da casa mas também na vida pública, está destinada ao
fracasso. Nenhum país será livre, próspero e justo sem essa
participação.
O mesmo se pode dizer da relação entre Estado e
religião: os princípios contidos no Corão, na Torá ou na Bíblia podem
ser uma das fontes de inspiração para o poder político ou até da lei
geral de um país, mas em nenhum caso a podem amarrar ou determinar. A
separação entre as duas esferas é condição indispensável da liberdade
individual de religião e consciência, é condição de um Estado de direito
e democrático. Judeus, muçulmanos e cristãos podem lutar para
influenciar as leis, os costumes, as tradições. Mas a esfera da sua
influência é de ordem moral, não tem necessariamente tradução jurídica.
Podem defender a proibição do aborto e até da contracepção, mas não
podem legislar nesse sentido. O seu afastamento do poder é não só a
garantia do carácter democrático da sociedade, como também da sua
própria idoneidade como instituições religiosas.
Não sei se alguma destas duas condições será possível no mundo árabe. Mas sem elas não haverá uma verdadeira “primavera”.
IN "PÚBLICO"
05/12/11
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