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A propriedade privada e
a tragédia dos comuns
Portugal tem tido na propriedade privada um pilar estruturante, até mesmo culturalmente. Ser dono de si significa muito literalmente ser dono. O resto é conversa, navegue-se à esquerda ou à direita.
Passará este ano meio século sobre a publicação de “A tragédia dos
comuns”, o artigo de seis páginas de Garrett Hardin na revista
“Science”. Um dos textos mais debatidos na microeconomia, tornou-se,
além disso, um dos mais influentes mantras com que a economia vai
fazendo as vezes do que antes era feito por outros discursos de
moralidade: receitar formas de conduta. A sua intuição básica é de que o
uso de um recurso que não é de ninguém, mas a que todos podem aceder
para tirar proveitos privados resulta numa sobre-exploração que acabará
por destruir o recurso.
O artigo exemplifica com uma pastagem de
acesso livre a todos, que os pastores tenderão, racionalmente, a
sobre-explorar de uma maneira que não fariam se a pastagem fosse sua
propriedade privada. A tragédia dos bens comuns consiste, muito à
maneira do que eram as tragédias gregas, no reconhecimento da condenação
a um destino inescapável, no caso, o da exaustão do recurso comum.
Paradoxalmente, o recurso ser privado protegê-lo-ia melhor do que sendo
comum. Outro caso, que se tem tornado tragicamente exemplar, é o dos
bancos de peixe no mar, que não sendo propriedade de ninguém, e nem
sequer sendo fácil condicionar o seu acesso, acabam sendo exauridos.
Acérrimos
debates, com forte carga ideológica, acompanharam os 50 anos de
história da recepção do artigo de Hardin. Seria assim tão tragicamente
inescapável o destino dos bens comuns ou, pelo contrário, o que estaria
essencialmente em causa era a activação de mecanismos de regulação do
uso desses bens, que deixariam assim de estar condenados à exaustão?
Elinor
Ostrom, a primeira e até à data única mulher laureada com o Nobel de
Economia, seguiu essa linha de raciocínio, indicando um conjunto de
princípios para a boa governação de recursos comuns, e que passam, como
não poderia deixar de ser, pela criação de regras de uso do recurso
comum e de sanções para o desrespeito dessas regras. A teoria, aliás,
não traz grande novidade sobre as práticas, como sabe, por exemplo,
qualquer apreciador da pesca da truta nas ribeiras que descem a Serra da
Estrela.
Mas o uso de recursos comuns ser regulado não é tudo.
Talvez o lado mais iluminador da tragédia dos comuns até passe assim
despercebido. É que a tragédia da sobre-exploração dos comuns não vale
apenas para os casos de exploração directa destes recursos, como nos
exemplos dos bancos de pesca, ou das propriedades comunais, a pedirem
regulação.
Vale também para a exploração indirecta de recursos
comuns, ou seja, quando esta ocorre mediante a exploração da propriedade
privada. E com tanto ou mais relevo quanto a propriedade privada
prevalece fortemente sobre qualquer outra forma de propriedade. Por
exemplo, é assim com o turismo que obviamente só explora uma colecção de
bens privados na medida em que é assim que também explora um bem comum.
E
para dar outro exemplo que nos diz especialmente respeito, também a
exploração de eucaliptal ser feita em terrenos privados não deve fazer
perder de vista que há bens comuns a serem indirectamente explorados, a
começar pela segurança das pessoas.
Portugal tem tido na
propriedade privada um pilar estruturante, até mesmo culturalmente. Ser
dono de si significa muito literalmente ser dono. O resto é conversa,
navegue-se à esquerda ou à direita. Esta cultura não pode deixar de ser
associada a uma realidade social de enormes desigualdades, face às quais
a propriedade, por escassa que fosse, permitiria algum amparo. A
cultura de propriedade repercute-se num rentismo do território, desde o
pequeno terreno entregue ao eucaliptal pré-pago, até ao apartamento
entregue a short-rentals.
Se o território português é tão
destratado é certamente por a economia em Portugal ter uma vertigem
enorme pela tragédia dos comuns. É com o turismo, é com os eucaliptais, é
em geral com os usos da propriedade privada. Importaria compreender e
assumir que a propriedade, por ser privada, não deve estar mais livre
para condenar os bens comuns à tragédia.
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
25/08718
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