HOJE NO
" JORNAL DE NEGÓCIOS"
Trabalhar não pode ser castigo
Numa altura em que ter trabalho é mais do que uma
bênção, diversos estudos comprovam que o grau de insatisfação com o
mesmo nunca esteve tão elevado.
Para o filósofo Roman Krznaric,
“entrámos numa nova era de realização pessoal, na qual o grande sonho é
trocar o dinheiro pelo significado”. E esse é o tema de um livro
apaixonante e que nos obriga a repensar muitos dos dilemas que
enfrentamos todos os dias
“O trabalho é um mal necessário a ser evitado”
Mark Twain
Nos tempos que correm, e sempre que alguém se queixa do trabalho
em excesso, de chefes insuportáveis, de horários abusivos ou se
pronuncia a popular frase “não aguento mais o meu emprego”, há sempre
alguém que nos olha com um ar furibundo e que diz: “dá é graças por ter
trabalho”. O que, face ao flagelo que assistimos no mercado laboral, é
uma verdade indiscutível.
Todavia, esqueçamos por alguns instantes a falta de emprego e
concentremo-nos na falta de vontade para nos erguermos todos os dias da
cama para ir trabalhar. Ao longo de séculos, o trabalho sempre foi
encarado como uma necessidade feia e não como uma fonte de identidade.
Todavia, e como argumenta o filósofo Roman Krznaric, “entrámos numa nova
era de realização pessoal, na qual o grande sonho é trocar o dinheiro
pelo significado”. Apesar de serem decerto muitos os leitores que
discordam desta nova máxima filosófica, a verdade é que, de acordo com
vários estudos, o grau de insatisfação das pessoas relativamente ao
trabalho que têm, está a crescer significativamente. A maioria das
pesquisas feitas no Ocidente revela que, pelo menos metade dos
entrevistados é infeliz no seu local de trabalho. Num estudo feito
somente na Europa, a percentagem dos insatisfeitos cresce para os 60%.
Nos Estados Unidos, a satisfação com o trabalho atingiu, desde que há
registos, o nível mais baixo de sempre: 45%.
Dados os números, não parece de todo má ideia dedicar um livro à
procura do significado para o trabalho e foi o que fez Roman Krznaric,
no seguimento das obras que têm a chancela da The School of Life, o
empreendimento cultural fundado pelo famoso Alain de Botton, escritor de
ensaios que têm sido descritos como “filosofia para a vida de todos os
dias”. How to Find Fullfiling Work não é um livro grande, mas tem todos
os ingredientes para ser um grande livro. Escrito com base numa
agradável e inteligente mistura de factos históricos, psicologia e
entrevistas enriquecedoras, desconstrói muitos dos mais comuns dilemas
relacionados com o trabalho e com a carreira, tal como a
sobre-abundância (ou escassez) de opções de emprego, os compromissos
prematuros que somos obrigados a fazer em tenra idade sobre as nossas
opções de carreira, a “psicologia do medo” que nos mantém aprisionados a
um trabalho que odiamos, como avaliar se determinado trabalho tem ou
não significado ou sobre o tipo de recompensas que dele retiramos. Mas
se está à espera de mais um livrinho de auto-ajuda, de consumo rápido e
dicas mágicas, este não é o caso. Mais do que dar respostas, a obra de
Krznaric faz perguntas. Mas também nos força a tentarmos respondê-las.
Especialização versus tocar sete instrumentos
A
insatisfação vocacional que parece estar a aumentar em todo o mundo
pode ter as suas raízes no culto da especialização iniciado de forma
substancial com a Revolução Industrial. Ao longo dos dois últimos
séculos, ser-se especializado em alguma coisa consistia na melhor forma
de utilizarmos os nossos talentos e ganharmos, em simultâneo, um status
social reconhecido que derivava directamente da nossa área de
especialização. “Ser-se especialista em…” sempre constituiu o orgulho de
muitos, mesmo que, para tal, existissem custos, pois o que parece
sobressair na natureza humana são “eus múltiplos” e parecem ser mais
felizes aqueles que apostam na multiplicidade de talentos.
Mas a verdade é que a veneração dos “especialistas” tem vindo a
ser uma norma no mercado laboral desde há 200 anos. E, tal como advertia
o arquitecto e inventor futurista Richard Buckminster Fuller –
presidente da MENSA, a famosa e mais antiga associação de génios – e
famoso também por exortar contra a especialização, Krznaric também o
faz, argumentando que este culto “rouba” uma parte essencial do ser
humano: a fluidez da personalidade e a sua multiplicidade.
Num excerto do livro republicado na BrainPickings, o autor escreve:
“A especialização pode ser óptima caso se possua competências
particularmente indicadas para determinada área ou se existir uma paixão
por um determinado nicho, sendo que, e obviamente, possui também o
benefício de a pessoa em causa se sentir orgulhosa por ser um
especialista. Mas existe também o perigo de o especialista se tornar
insatisfeito, dada a repetição inerente a muitas profissões
especializadas. Adicionalmente, a nossa cultura de especialização entra
em conflito com algo que muitos de nós reconhecemos intuitivamente, mas
que os conselheiros de carreira só agora estão a começar a perceber… O
facto de termos talentos, valores, interesses e experiências
multifacetadas e complexas, o que também significa que nos podemos
sentir completamente realizados enquanto web designers, ou como polícias
ou a gerir uma mercearia de produtos naturais”.
A vocação não é algo que encontramos, mas que cultivamos
“Sem
trabalho, toda a vida começa a apodrecer, mas quando o trabalho é feito
sem alma, a vida asfixia e morre”, escreveu Albert Camus, citado por
Krznaric. E encontrar um trabalho com alma transformou-se em uma das
grandes aspirações da nossa era. E, como escreve o autor, temos de
reconhecer que “uma vocação não é algo que descobrimos, mas que
cultivamos”.
Krznaric afirma que, geralmente, as pessoas encaram a vocação
como algo “para o qual nascemos”. Mas o autor prefere uma definição
diferente, algo mais próximo às origens históricas do conceito: “uma
vocação é uma carreira que não só nos oferece um sentimento de
realização – com significado, que nos ‘faz correr’ e sentirmo-nos livres
– mas que possui igualmente um objectivo conclusivo ou um propósito
claro pelo qual lutamos, o qual conduz as nossas vidas e nos motiva a
sairmos da cama pela manhã”.
Em termos históricos, este desejo por um trabalho que nos
preencha, que ofereça um sentimento profundo de propósito e que reflicta
os nossos valores, paixões e personalidade, é uma invenção moderna.
Como relembra o autor, ao longo de muitos séculos, a maioria dos
habitantes do mundo ocidental esteve demasiado ocupada a lutar para ir
ao encontro das suas necessidades de sobrevivência, não tendo sequer
tempo para se preocupar em encontrar uma carreira na qual pudesse dar
uso aos seus talentos ou que contribuísse para o seu bem-estar interior.
Mas na actualidade, e “com a disseminação da prosperidade material, as
nossas mentes ficaram mais libertas para esperar muito mais daquilo que é
a aventura da vida”, escreve.
Nesta “troca” do dinheiro pelo significado, Krznaric sublinha as
duas principais aflições do local de trabalho moderno – “a praga da
insatisfação laboral” e a “incerteza sobre como escolher a carreira
certa”.
E enquadra a problemática a partir de duas abordagens possíveis. A
primeira, que intitula de “sorri e aguenta” representa a noção de que
devemos controlar as nossas expectativas e reconhecer que o trabalho,
para a vasta maioria das pessoas, é uma rotina pesada e que sempre o
será. Voltando às raízes históricas, o autor recorda que a palavra
“labor” vem do latim e significa fadiga ou labuta, sendo que a palavra
francesa “travail”deriva de tripalium, um antigo instrumento romano de
tortura, feito com três paus. E esta é mensagem subjacente à abordagem
do “sorri e aguenta”, que significa que há que aceitar o inevitável,
fazer qualquer que seja o tipo de trabalho que encontremos desde que
este satisfaça as nossas necessidades financeiras e, na melhor das
hipóteses, nos deixe tempo livre suficiente para gozar a nossa “vida
real” fora dos constrangimentos dos horários laborais. A melhor forma de
vivermos com esta realidade, diz Krznaric, é a partir da filosofia da
aceitação e da resignação.
Todavia, o filósofo afirma que é possível enveredar por uma
segunda abordagem e aspirar a algo mais do que um “trabalho normal” cuja
função principal é a de pagar as nossas contas.
HELENA OLIVEIRA "PORTAL VER"
* Para reflectir
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