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Vamos escrever
cem vezes:
escrever é trabalho
1. Recebi um “convite” para ser “oradora” graciosa numa
“conferência” sobre “Mercado de trabalho em Escrita”. O que ia fazer
quando vi o “convite” era mais uma pesquisa para o livro
que estou a escrever 10 ou 12 horas por dia, seis ou sete dias por
semana. O “convite” teve o efeito de interromper isso, tirando-me do
sério. Já uma vez toquei no assunto, que não é só meu, é de toda a gente
que escreve, desenha, ilustra ou fotografa, mas parece que tudo está
pior. Então voltemos ao assunto, a ver se a gente acaba com estes
“convites” antes que eles acabem connosco.
2. O tom pomposo do “convite” começava no título. Não gostei do tom
nem dos termos, mas o que ainda aí vinha. A “conferência” era daí a uma
semana e eu deveria comparecer uma hora antes do início para conhecer os
outros oradores, que não eram revelados no “convite”. A “ideia” seria
“ter uma primeira fase em que cada orador expõe a sua experiência
pessoal/percurso profissional” e depois debater “a visão que os vários
oradores têm da evolução do mercado e do actual acesso a este por parte
dos futuros profissionais do meio”. Tudo isto, no “centro de formação em
áreas criativas” que endereçava o “convite”. Ou seja: uma escola
privada manda um email uma semana antes de uma conferência, a dizer que
me convida a ser oradora num painel de oradores não identificados, para
falar da minha “experiência pessoal” e da minha “visão” da “evolução do
mercado”, avisando-me desde logo que devo comparecer uma hora antes.
Faltava-me só ler o parágrafo em que eles indicariam a remuneração, e de
que forma contavam assegurar a minha deslocação a Lisboa num fim de
tarde de segunda-feira, para uma sessão que acabaria às 21h. Mas não,
não existia tal parágrafo. “Aguardamos a sua confirmação, com os
melhores cumprimentos”, fulana de tal, do departamento de Comunicação.
3. Respondi de imediato o que já decidira ao começar a ler o email,
que me era impossível aceitar o convite. Mas fiquei curiosa: não era
possível um convite neste tom, mercado para aqui, profissionais para
ali, sem uma remuneração. Ou era? Escrevi então a fulana de tal, do
departamento de Comunicação, reforçando que me era impossível aceitar
mas que gostaria de saber se os oradores não eram remunerados, se sim
por que não estava isso no convite, se não por que razão. Fulana de tal
respondeu que a conferência se integrava na “Animação Cultural” da
escola, portanto não cobravam entrada, portanto não gerava receita,
portanto não remuneravam os oradores. Respondi que discordava de tudo,
do convite à explicação, que já escrevera sobre o assunto mas assim
sendo voltaria a ele numa crónica.
4. Se eu não tivesse nada para fazer, e achasse divertida a ideia, a
única justificação para aceitar a conferência seria ir lá dizer aos
alunos que nenhum dos oradores estava a ser pago, e que essa é a
primeira coisa a aprender, caso queiram viver da escrita: não sejam
oradores de graça. Primeira coisa depois de: não escrevam de graça.
Porque (vamos escrever cem vezes): escrever é trabalho e todo o trabalho
deve ser remunerado. Elementar, não? Só que não. Ao ponto de uma escola
que fala de mercado e profissionais achar que quem escreve pode ir lá
falar de graça sobre como vive da escrita. No meu caso: que eu poderia
sair do Alentejo, perder dois dias de trabalho entre ir e voltar, para
falar numa escola privada sobre como vivo da escrita. É simples: vivo se
me pagarem.
5. A justificativa para a ausência de remuneração seria ainda mais
irritante se não fosse infantil. Uma escola privada vive de tudo o que
conseguir fazer para captar alunos: conferências, “animação cultural”, o
que lhe quiserem chamar. Então, cada orador não remunerado está
simplesmente a dar horas do seu trabalho para que a escola privada
continue a existir. Mas onde a coisa entra pela paródia é nisso de a
conferência ser sobre “Mercado de trabalho em Escrita”, contrariando na
produção o seu próprio conceito. Fiquemos pela paródia, na melhor das
hipóteses não se trata de exploração, só falta de noção.
6. O problema da falta de noção é que ela afecta privados e públicos,
todo o tipo de entidades, jornais e revistas. Portugal tem uma tradição
de escritores que vieram das elites ou, quando não, que exerceram
outras profissões em paralelo. Durante décadas foram raros, ou vistos
com menosprezo, os casos de quem vivia apenas da escrita. Entretanto,
sempre vi e continuo a ver gente que escreve sem um tostão, porque o
mercado sempre se alimentou da sua própria atrofia. Há publicações em
Portugal que sobrevivem de poder encomendar trabalho não remunerado. Ou
seja, o mercado vive de não pagar o trabalho.
7. Mas é o trabalho que gera mercado. Esta conversa não é um
choradinho sobre madraços que querem prebendas. Falo de trabalho
remunerado, nas diversas formas que o trabalho da escrita pode ter:
textos, debates, encontros, conferências, livros, filmes, peças de
teatro. O Brasil tem muitos problemas para resolver quanto à leitura,
mas conseguiu generalizar isto em entidades públicas e privadas: o tempo
do escritor deve ser pago, porque esse tempo é trabalho.
8. Optar por escrever livros já é, em geral, optar por ganhar pouco dinheiro. O autor ganha 10 por cento na venda de cada livro,
e as vendas são baixas. Portanto, quem escreve livros já dedica a maior
parte do seu tempo a um trabalho, em geral, escassamente remunerado. Se
consegue viver da escrita é porque se multiplica em outros textos ou
encomendas, mas se esses trabalhos forem gratuitos estará só a adiar o
próximo livro. Os convites não-remunerados impedem que os escritores
escrevam livros. Em suma, se querem continuar a ler um autor,
paguem-lhe. Não almoços e jantares, cerimónias e vénias: trabalho
remunerado.
9. Uma amiga escritora contou-me que na primeira residência de
escrita que fez na Alemanha havia um aviso que dizia: sempre que aceitar
trabalhar de graça está a prejudicar outros. É isso, colegas,
camaradas, escritores, estagiários, futuros jornalistas, ilustradores,
desenhadores, fotógrafos: não trabalhem de graça para o mercado. O
mercado que não paga o trabalho, ou não o paga decentemente, baixa a
fasquia, apela à falta de alternativa, a quem precisa de ganhar
curriculum. Trabalho mal pago não vai ser bom, bom trabalho leva tempo.
Não nos queixamos mais do que você, engenheiro ou electricista, somos
todos gente que trabalha. Em Dezembro de 2012 decidi deixar os quadros
do PÚBLICO. Sou freelancer desde então,
cronista deste jornal. Já aceitei escrever de graça para o mercado. A
última vez foi em Dezembro de 2013. Não o farei mais.
10. Há uma última, grande, razão para que todo o trabalho seja
remunerado: quero ser eu a decidir quando dou o meu trabalho. É bom dar o
nosso trabalho a amigos, a quem quisermos. Pode ser bom trocar o nosso
trabalho por livros, concertos, viagens ou tempo. Mas é uma decisão
nossa, porque o nosso trabalho é nosso, e nenhuma entidade deve partir
do princípio de que não é trabalho. Que a falta de orçamento em
publicações, câmaras, centros, bibliotecas, escolas sirva para inventar
alternativas. Tudo menos o “convite” que nem alude a remuneração, como
se estivéssemos no Olimpo que não lida com dinheiro, ou estivéssemos a
ser escolhidos, que benesse. Quem tenta viver exclusivamente da escrita,
da ilustração ou da fotografia, e está longe de ter uma reforma, tão
longe que provavelmente nunca a terá, embora tenha de pagar à Segurança
Social todos os meses, não vive à espera do duende ou do espírito
mágico. Trabalha todos os dias, lê, pensa, pesquisa, anota, apaga, faz,
refaz, erra, volta. Vamos combinar que o duende ou o espírito mágico são
tudo o que a gente quer mas dão muito trabalho?
ESCRITORA
IN "PÚBLICO"
25/05/14
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